“Ogunhê!”. É essa a primeira palavra ouvida quando damos play no álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap paulistano Racionais MC's. Nenhuma poderia ser mais adequada para introduzir a obra. A expressão é uma saudação dirigida a Ogum, santo guerreiro de religiões de matriz africana. O álbum, feito por artistas pretos para seus pares, homens e mulheres da periferia, resgata as origens e as lutas da população mais marginalizada do país e denuncia a violência e o descaso nas favelas brasileiras da época. 26 anos depois, o álbum ainda possui impacto igual, senão maior, justamente por ainda existir em um Brasil que pouco avançou.
Responsável por alçar o grupo ao estrelato nacional, consolidando os Racionais MC’s como alguns dos maiores rappers brasileiros, a obra é dura, difícil de ser digerida ou mesmo entendida por completo por pessoas que estão fora do campo da mensagem proferida por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay. É esse o maior trunfo do álbum: o grupo não canta para o Brasil todo. Pelo contrário, escolhe com cuidado o público para quem destina a obra e, assim, canaliza sua revolta e potencializa a voz de milhões de pessoas que nunca tiveram a chance de sequer falar ou de serem ouvidas por um Estado que as ignora. Ao mesmo tempo, direciona essa mesma revolta para quem nunca foi atingida por ela, impactando cada lado da sociedade de formas diferentes, mas igualmente importantes.
Símbolo da atemporalidade da obra, a referência divina no início marca uma batalha contra o abandono em periferias. As faixas, organizadas em uma linha de raciocínio que brinca entre o divino, com o culto a santos e entidades religiosas, e o profano, com personagens criminosos e violentos, são cuidadosamente colocadas em uma sequência que faz o ouvinte questionar seus próprios princípios. Independente de qual lado este se encontra, ele se perde em suas convicções ao se comover com a história de um criminoso arrependido de seus pecados, morto por um antigo aliado na faixa “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”, ou se mover pelo sentimento de fúria da faixa “Capitulo 4, Versiculo 3”. Esta última, uma das mais famosas do grupo, brilhantemente perpassa pela vivência de jovens negros da periferia paulistana, com poucas perspectivas frente à violencia, às drogas e ao racismo.
O álbum não poupa críticas escancaradas ao sistema, aos políticos e às pessoas que contribuem para a marginalização da periferia. Em passagens emblemáticas, os artistas atribuem de forma realista a violência urbana periférica à própria necessidade, esta advinda da negligência do Estado. Em um cenário no qual o Brasil via aprofundar suas desigualdades sociais e tinha nas periferias da zona sul de São Paulo verdadeiros cenários de violência e crime, o grupo surgiu como uma voz potente de denúncia, alcançando o reconhecimento necessário para incomodar com "Sobrevivendo no Inferno". Os “quatro pretos mais perigosos do Brasil”, como já se denominaram diversas vezes, conquistaram uma legião de fãs de igual origem que conseguiram enxergar nas músicas do album suas vivências e mazelas pelo olhar sensivel — quase poético — de outros quatro jovens negros perfiéricos.
É inegável a importância e o impacto que essa obra causou na música e mesmo na sociedade brasileira. O rap, na época ainda mal assimilado como parte da cultura musical do país, foi a ferramenta mais importante para dar luz a tópicos que incomodavam os playboys do Brasil. Dos veículos de mídia à elite política, o álbum conseguiu deixar uma pulga atrás da orelha de todos que precisavam de um “choque de realidade”. Mesmo com o passar do tempo, entretanto, o sistema criticado ainda se mantém, construído por pessoas ricas e brancas para manter pessoas pobres e pretas na eterna servidão. Como na década de 90, o modelo é replicado em um Brasil de 2023.
Em 12 faixas, o ouvinte é transportado para toda essa raiva, todo esse acúmulo de problemas de uma favela paulistana. O divino e o profano, o certo e o errado, o crime e a justiça são dicotomias que passeiam pelas letras bem elaboradas e expressas quase que em diálogos, com melodias que tem samples de diversas obras nacionais e internacionais. Histórias foram construídas com o álbum, permitindo ao grupo chegar, pela primeira vez, à MTV Brasil. Premiada pela emissora, a faixa “Diário de um detento” talvez seja uma das mais famosas do projeto. Inspirada em uma história real, retrata de forma crua e brilhante o dia 2 de outubro de 1992, quando ocorreu o Massacre do Carandiru.
Aqui, há espaço para apontar o que talvez seja o único ponto negativo que poderia levantar do álbum. Este, por sinal, também advém da maior aliada da obra: a passagem do tempo. Algumas letras problemáticas, que hoje podem ser lidas como expressões machistas e homofóbicas, são parte do processo de análise contemporâneo de obras criadas em um outro contexto. Portanto, enquanto não houve grandes problemas quando o álbum foi lançado, hoje essas letras representam pontos de atenção que devem ser absorvidos com mais cuidado pelos ouvintes. Mesmo assim, abre-se espaço para um pouco de sensibilidade sociológica ao entender qual era a realidade daquele grupo, tornando possível o perdão perante problemáticas que nem sequer eram assimiladas pela maioria das pessoas em 1997.
Mesmo assim, como dito, é na virada de século, nas mudanças rasas que a sociedade brasileira viu acontecer que Sobrevivendo no Inferno encontra seu maior triunfo, pois o álbum pode ser reproduzido com o mesmo impacto em 2023 como foi em 1997. A obra ainda é tão atual quanto no dia 20 de dezembro daquele ano. A dura realidade da violência, da opressão policial, do crime, do encarceramento e das drogas é ainda tão viva na vida de milhões de brasileiros quanto era quando o grupo a cantou lá atrás. Ao mesmo tempo, a esperança, a vida e a união do povo periférico também continuam vivas, até mais intensamente, me arrisco a dizer, do que eram quando cantadas em faixas como “Em qual Mentira Eu Vou Acreditar”. O país para as pessoas retratadas no projeto continua preso a estigmas e à marginalização. Felizmente obras como essa ajudaram (e ajudam) a fortalecer uma importante cultura de orgulho periférico e de estímulo para resistir. Se em 1997 a violência policial, por exemplo, era rotina aceita de forma temerosa, hoje abrem-se protestos e ocupam-se espaços de poder contra ela.
Com rimas inteligentes, recheadas de ironia e pesadas críticas, o grupo realizou um feito extraordinário: deu voz a um povo que raramente a tem. Claro, o projeto ultrapassou as barreiras geográficas e sociais e hoje pode ser apreciado por pessoas de qualquer faixa etária, classe social e residentes em qualquer endereço. No fim, entretanto, ninguém vai sentir o impacto de Sobrevivendo no Inferno como os ilustres moradores da periferia que veem sua realidade retratada nele, do Vaz de Lima ao Jardim Hebrom, seja em 1997 ou em 2023.
Autoria: Arthur Quinello
Revisão: Anna Cecília Serrano e Enrico Recco
Imagem de capa: colagem própria - Klaus Mitteldorf/Divulgação, Sobrevivendo no Inferno
Referências:
CARAMANTE, A. “Os Quatro Pretos Mais Perigosos do Brasil”. Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/artigo/racionais-mcs-quatro-pretos-mais-perigosos-do-brasil/>. Acesso em: 20 dez. 2023.
Entenda como os Racionais fizeram de “Sobrevivendo no Inferno” um marco cultural. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/entenda-como-os-racionais-fizeram-de-sobrevivendo-no-inferno-um-marco-cultural.shtml>.
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