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VOCÊ


(Música para a leitura:

“Suite bergamasque L.75, 

IIIº movimento ‘Clair de lune’” – Claude Debussy)


Já se pegou andando por aí sozinho, pelas altas horas da noite, com uma leve brisa de verão vindo ao seu encontro, e de repente percebeu que era você? Acontece às vezes comigo, mais do que o normal recentemente. Não sei exatamente o porquê. Devem ser meus óculos.


Imagina só: você caminhando pela rua, voltando pra casa, o mundo em um suposto eterno silêncio. É estranho. Por um lado, você se sente parte daquela calmaria, mas por outro sempre tem paz antes da tempestade e eu não quero estar por aqui quando começar a despencar raios e trovões e sei lá o que mais, melhor voltar pra casa. Meio fatalista? Também podemos ver isso tudo por um lado mais romântico: as estrelas do céu iluminando a noite, as estrelas da terra tornando tudo mais humano. Algumas pessoas riem, outras dormem. Uma gigante de concreto que aparenta, por alguns instantes, ser tão pequena. O vento passa pelo seu rosto de leve, como um toque suave de uma palma amiga. A vida parece ter ficado mais vívida, não? Delírio? Talvez.


Ai meu Deus, corre! Já são 23:43, você vai perder o trem.


Meio apertadas essas entradas do metrô da Paulista, eu sempre achei pelo menos. Eu já tive medo de que tinha alguém me esperando nas viradas daquela escada. Por isso, sempre preferi pegar a entrada maior, mas elas também não são nada colossais, né? O que eu acho legal mesmo é ficar reparando nas personalidades das linhas de metrô, todas tem seu estilo único. A linha azul é toda brutalista, mas isso não é algo ruim. Estações feitas com concreto totalmente à mostra, bem cidade, bem urbano. Quanta modernidade. A vermelha ainda vai na mesma da azul, mas você consegue ver algumas plantas aqui e ali, alguns azulejos diferentes. Quebrar com a maninha, mas não de uma forma rebelde. A verde, para mim, queria ser linha do metrô de Nova York, porque, apesar de brutalista, ela faz de um jeito descolado, de um jeito “olha como eu tenho tanto a fazer: preciso passar no meu café favorito em Pinheiros, depois partir pro trabalho na Paulista e olha só que Tomie Ohtake lindo na plataforma. Será que o MASP já abriu?” Meio prepotente, se perguntar pra mim. Sabia que agora, na Trianon-MASP eles aceitam pagamento com cartão, direto na catraca? Pra mim, demorou pra chegar, mas acho uma praticidade só.


No que eu corro as escadas para ver se aquele trem que acabou de chegar na plataforma era o meu, um dos rapazes que já estava dentro tenta segurar a porta para eu entrar. Eu consigo, por um triz. “Ufa! Obrigado, viu?” Ele balança a cabeça como quem diz “Não por isso!”. Todo mundo sabe o desespero de perder o metrô essas horas, ainda mais quem precisa pegar também a linha amarela naquela baldeação quase que infinita da Consolação. A amarela fecha justo à 00:00, até para baldeação, o que eu acho um absurdo.


A linha amarela todo mundo sabe, é uma mistura de faria-limer com o seu típico santa-ceciler que ama garimpar no centro. Às vezes, brota alguém da Fradique pra dar uma olhada, mas os dois primeiros são quem dominam de verdade. Aquele ar de esquerdomacho e mercado financeiro tudo de uma vez só, complicado. E sim, posso até ser um santa-ceciler, mas é importante entender que a autocrítica é essencial, minha gente.


Nesses momentos, ela me vem à cabeça. Vem na sua também, imagino? Ela sempre vem. Pensamos que somos desprendidos, que temos conquistado uma suposta independência de nossas emoções, que somos donos do próprio nariz. A gente tende a ser altruísta desse jeito (ou a ter delírios de grandeza, dependendo por onde você vê isso). Para mim tem sido difícil, mais recentemente, andar por todos esses caminhos e não pensar nela. E também, pudera! Ela está em toda parte! Consigo observá-la em praticamente tudo: desde a roupa de transeuntes desconhecidos, até o jeito como a luz reflete nas barras de apoio do metrô. É enlouquecedor. Só que a loucura não costuma ser tão deliciosa assim.


A Higienópolis-Mackenzie é muito profunda, né? Colocaram placas nos “andares” para, penso eu, dar uma noção de que você não está fazendo uma viagem ao centro da terra, e sim a um estacionamento muito elaborado (ou com péssimo design, já que não tem espaço para um carro sequer). Para mim, não adianta de nada e acho que para os outros também não. Estamos todos tão ocupados que parar para observar uma plaquinha amarela na parede é pedir um pouco demais. E olha que me entristeço um pouco com isso, sempre me orgulhei de olhar por onde ando. Eu paro para ver tudo, ler cada placa no chão, o grafite ou a pixação no muro, as cartas de amor que deixam por aí. Me lembra da escritora Fran Lebowitz que diz que é a única pessoa em Nova Iorque que olha por onde anda. Eu gosto de pensar que sou uma das poucas em São Paulo que também olha por onde anda (chore, Narciso).


Uma vez, eu encontrei uma carta de amor dela, no meio da rua, jogada. Deve ter deixado cair por acidente, foi o que pensei quando a vi pela primeira vez... “Anjo, em qualquer lugar que eu vou eu penso em você, a todo momento, porque você está em meu coração. Te amo!” Dei um leve sorriso. Quem não daria? É tão bonito ver ela demonstrando seus sentimentos assim, não é? Me pergunto para quem deve ser. Ela nunca me chamou de “Anjo”, pelo menos não até hoje. Que visão ela tem de mim…


Mas talvez nem seja para mim, pode ser tudo delírio, afinal de contas, ela deixou cair aqui, vai que era para outra pessoa. Nem me sinto tão angelical assim. Mas você largaria o bilhete lá? E se fosse para você? E se não fosse? A dúvida é algo cruel, eu sei. Melhor levar por segurança. Ela sempre pode deixar cair outro.


Eu até que gosto do jato de vento que vem na sua direção saindo da estação, aproveito pra jogar o cabelo na onda e ajeitar ele um pouco. Nos dias de calor, é uma benção: um rápido momento de frescor antes de voltar para o bafo. Mas agora não está quente, o vento até me dá um pouco de frio. Pelo menos passa rápido. A escada termina, eu viro à esquerda, saio de vez da estação e minha nossa. Está tudo vazio… a rua deserta, os prédios apagados, só alguns postes minguantes para iluminar o caminho. A solidão de um momento a sós com o mundo é meio assustadora, na verdade. Mas a coisa da vida é essa, né? Não é viver sem medo, é viver apesar dele. Em frente, querido!


E por outro lado… quanta emoção! O mundo é literalmente um palco, dá pra dançar, cantar e se entreter com as fachadas dos prédios e as poucas janelas acesas, ficar pensando no que fazem todas aquelas pessoas… Ou talvez eu só seja um pouco louco mesmo. Imagina se a vida fosse um musical? Será que seria chato? Ou nem perceberíamos quando começássemos a cantar? Eu não sei se sobreviveria viver em um constante musical, mas devo dizer que poderia ser lindo.


De repente, vejo que as nuvens começaram a se mover. O vento bateu um pouco mais forte e meu casaco começou a se mexer mais rapidamente. Não pode ser, não acredito. Minha amiga, será que é você? Corro o mais rápido que posso para alcançar o topo da rua e então, lá em cima, eu a vi. Ahh minha querida, você está linda essa noite. A lua é fascinante mesmo: eternamente presa em seu eixo, nos mostrando uma de suas faces enquanto encobre a outra de mistério. Eu acho legal ficar admirando o céu a noite e procurar por constelações. A que eu mais gosto é o Cruzeiro do Sul, mas raramente a vejo. Devem ser meus óculos.


Muito complexo isso, não acha? Eu me confundo às vezes também. Mas é divertido, ao mesmo tempo que é profundo. Tipo a Higienópolis-Mackenzie. Ou a Pinheiros. São dois subdepartamentos do centro da Terra, você pode escolher.


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Autoria: Enrico Romariz Recco

Revisão: Ana Carolina Clauss e Vinícius Floresi de Oliveira

Imagem da capa: Acervo pessoal


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