O dicionário Aurélio define “cultura”, em seu sentido social, como “O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade”. Adiciona-se ainda que “[Nas ciências humanas, opõe-se por vezes à ideia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais]”. Existem milhares de teorias filosóficas e sociológicas sobre o que estrutura a cultura e sobre como ela nos difere de outros animais, mas acredito que, como a própria etimologia delineia, tanto a raiz quanto os galhos desse conceito crescem nas relações em sociedade. Que momento importante é o atual, então, para refletir sobre os impactos na cultura de um mundo pandêmico que explora políticas de isolamento social. Um mundo no qual as associações humanas navegam em águas desconhecidas, onde o contato, a “comunicação e cooperação” não existem no formato habitual.
Vivemos uma revolução na maneira de pensar o ente social, o “animal político” e, sim, também o ser cultural. De uma forma geral, o contexto pandêmico modifica a cada dia as instituições que nos estruturam “humanos”, e também nossa compreensão delas. O que é a cultura na pandemia? A resposta é complexa. O que eu venho percebendo desde o começo do nosso apocalíptico 2020 é que a falta de convivência social transformou profundamente nossa relação com as artes e com a cultura. Para os que se permitiram, percebemos, mais profundamente, a importância dessas na nossa vida, não só por motivos de entretenimento ou de “passar o tempo”, mas de humanidade também.
Aos que podem e corretamente decidiram respeitar a quarentena, há ou houve pouco ou nenhum contato com a maioria das pessoas importantes da sua vida, com as não importantes também. Estamos desde março sem se relacionar nos formatos que já conhecíamos. Voltamo-nos, então, para o que nos lembra da vida humana, da sociedade que ultrapassa a concepção biológica. Voltamo-nos à música, literatura, obras de arte, cinema e dança. Nos seguramos na cultura. Nesse sentido, o progresso tecnológico é extremamente importante. Com toda certeza, as possibilidades de conexão imperam no mundo pandêmico. As performances artísticas, plataformas de música e redes sociais como um todo nos permitem acessar conteúdos culturais do outro lado do mundo em segundos, e, num momento onde até a distância de duas quadras de casa já define “o outro lado do mundo”, isso se tornou muito mais importante. Quantas lives*, apresentações de dança online e até exposições não observamos nesses últimos tempos? É um fato: o atual valor da cultura e da arte é imensurável.
A quarentena afetou a cultura de maneiras muito distintas. A falta de relacionamento impulsionou, ao mesmo tempo, essa explosão de conectividade como um ato de resistência humana e movimentos culturais de adaptação à realidade. As “festas” e debates são feitos por videoconferência e assistimos apresentações gravadas, seriam as “alternativas”, as tentativas de vivenciar algo próximo ao “normal”. Simultaneamente, surgem criações da quarentena. Telas, fotografias, histórias nascem inspiradas no isolamento e nesse quadro tão diferente da existência humana. A “websérie” “Sala de Roteiro” é um ótimo exemplo. Disponível no youtube, foi gravada por videochamada. O isolamento simultaneamente limita e, me aventuro, abre caminhos desconhecidos. É um pêndulo que se move entre a vida social e a individual, e o que o conduz é exatamente o “conectar-se”.
Não é novidade, infelizmente, que todo esse cenário de acesso à cultura não é democrático. Frequentar espaços culturais deveria, mas não é uma opção para todo mundo. Atualmente, ainda que com toda a dinâmica da internet, a “facilidade” só existe para quem possui os meios e, desse grupo, muitos são excluídos. Esse é um problema persistente e muito preocupante, o qual deve ser levado a sério pelas lideranças do país e também por nós como sociedade. Existem projetos muito interessantes nesse sentido que surgiram nos últimos tempos e até durante a pandemia. O programa “Estadão Incentiva” criado no meio desse ano, por exemplo, dá acesso gratuito ao conteúdo digital a estudantes da graduação ao doutorado por até um ano, cumpridos alguns requisitos. Uma maneira de estimular o hábito da leitura e também o contato com informação, entrando, aí, a cultural. É necessário que se pense cada vez mais em maneiras como essa de democratizar a conexão e expandir o conhecimento cultural.
Pensando um pouco, agora, no aspecto econômico da cultura, é necessário lembrar que dessa instituição social também surgem aspectos políticos e de mercado, tanto de bens quanto de trabalho. O setor da cultura, no Brasil, apanhou bastante nos últimos anos. Um estudo realizado pela FGV em parceria com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo e com o Sebrae em julho deste ano indicou que 2,64% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional vem do setor de economia criativa, fonte, também, de 4,9 milhões de postos de trabalho. Afirmaram, ainda, que o PIB do setor criativo fechará em R$ 129,9 bilhões em 2020, 31,8% menor em comparação com 2019[1]. Vivemos uma crise econômica sem precedentes e o setor cultural, bem como seus trabalhadores, com uma necessidade quase intrínseca de convivência social para se manter, sofrem profundamente. Museus, teatro, cinema, todos requerem experiências presenciais, assim como shows e apresentações artísticas num geral. Padecem organizações e microempreendedores (classificação muitas vezes utilizada para artistas).
O sistema de indicadores culturais do IBGE, no entanto, já em 2019 demonstrou resultados que indicavam uma baixa da participação da cultura no orçamento público em vários níveis governamentais. No geral, essa passou de 0,28% em 2011 para 0,21% em 2018[2]. Se os números não fossem suficientes, analisando o aspecto político da relação do atual governo com a cultura conseguimos perceber o desastre. Em janeiro do ano passado o Ministério da Cultura, em seus 33 anos de existência, foi extinto, e a responsabilidade pela gerência federal de políticas públicas e projetos culturais foi passada para a Secretaria Especial da Cultura um órgão do Ministério do Turismo. De secretários especiais da cultura, tivemos Roberto Alvim no fim de 2019, exonerado do cargo em janeiro de 2020 após divulgar um discurso com semelhanças a uma fala do ministro da Propaganda da Alemanha Nazista Joseph Goebbels. Seguindo Alvim, tivemos Regina Duarte, nomeada em março desse ano e exonerada no começo de junho, após somente 3 meses e em meio a uma pandemia que destrói o setor. Beira o ridículo.
Mesmo reconhecendo o caos que vem sendo o tratamento da cultura no Brasil nos últimos tempos, busco trazer referências positivas e projetos importantes que surgiram como resposta às pancadas que o setor vem sofrendo com a quarentena. Muitos governos estaduais e municipais mostraram iniciativas interessantíssimas. Em Niterói, por exemplo, a Secretaria Municipal das Culturas e a Fundação de Arte de Niterói começaram, em março, o projeto “Arte na Rede”, realizando transmissões ao vivo de apresentações artísticas e podcasts, remunerando os artistas[3]. O estado do Rio Grande do Norte também implementou programas emergenciais de assistência à produção cultural local como o “Tô em casa, Tô na Rede”, o qual selecionou alguns projetos de trabalhadores informais em sofrimento econômico com a crise para remunerar e transmitir gratuitamente seu conteúdo no formato de lives ou de gravação[4]. O governo estadual de São Paulo seguiu em uma linha parecida com o projeto “Cultura em Casa”. A plataforma reúne conteúdos de instituições culturais e artistas, dentre esses a Pinacoteca, a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a Jazz Sinfônica e muitos outros, com acesso gratuito ao público[5]. Como iniciativa federal, ainda, destaco a importância da Lei Nacional de Emergência Cultural, popularmente chamada “Lei Aldir Blanc” em homenagem ao artista que morreu de Covid-19 neste ano. Apesar de haver tramitado de março a junho na Câmara dos Deputados, deixando o setor cultural sem um direcionamento bem estruturado nacionalmente por 3 meses, a lei estabeleceu meios e orientações para o repasse financeiro aos trabalhadores e espaços do setor cultural em todos os níveis de governo. É uma medida de extrema relevância no processo de reabilitação econômica do setor na conjuntura nacional[6].
Se as medidas tomadas foram o suficiente para recuperar a péssima situação do ramo cultural no Brasil descobriremos em algum tempo. É inevitável, a arte e a cultura num geral permeiam nossas vidas mais intensamente a cada dia. Sua ruína é a nossa como humanidade. Só mais um motivo, então, para não só exercermos nosso papel como sociedade civil exigindo boas políticas de administração cultural por parte dos nossos dirigentes, mas também continuarmos buscando formas de impulsionar o acesso a essa instituição social tão notável. Precisamos nos aproveitar do nível de progresso tecnológico em que nos encontramos tanto individualmente quanto como coletividade, de forma que todos os aspectos positivos da conexão sejam efetivos e globais. A área de economia criativa tem um importante papel nesse sentido e sua fomentação deve crescer para, cada vez mais, evoluirmos como povo no âmbito cultural do país. Afinal, com ou sem pandemia, necessitamos das relações sociais para, mais que sobrevivermos, vivermos. A cultura é causa e consequência dessas. É um dos pilares da existência humana.
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