
“Futebol, política e religião são coisas que não se discutem!”. Uma frase dita de forma recorrente, já se sabendo dos possíveis resultados hostis da discussão, usada para evitar conflitos em jantares em família e, mais recentemente, em grupos de WhatsApp. Assim, considerando que a isenção e o silêncio são o que garantem a paz e a estabilidade, nos negamos a defender nossas opiniões, apresentar nossas ideias e desenvolver nossas teorias, prezando principalmente pelo conforto de conversas que não entram em assuntos polêmicos.
Por outro lado, o futebol nem sempre esteve ausente de discussões políticas e do posicionamento de figuras importantes. Ao passo que o jogo se torna cada vez mais um produto a ser comercializado, com mais marcas nas camisetas, nos nomes dos estádios e nos campeonatos, menos abertura os jogadores e técnicos têm para se posicionarem, uma vez que uma simples frase poderia levar à perda de incontáveis milhões do seu próprio bolso.
O principal ponto em questão não é nem a ausência das discussões políticas por figuras do mundo da bola, mas sim o fato de que ser um reflexo da sociedade sempre foi uma tônica importante que tornava o futebol muito mais do que um simples jogo. Ao estudar a história do esporte, é difícil não se deparar com diversas questões sociais e políticas que refletiam a sua respectiva época.
Um bom exemplo a ser citado é a origem do Vasco da Gama e a luta contra o racismo, por exemplo. Sendo formado em 1898 (apenas 10 anos após a abolição da escravatura), o Vasco era composto por trabalhadores, em sua maioria pobres e descendentes de africanos. O então pequeno time carioca, que tinha a aceitação de pessoas de outras raças como o seu grande diferencial, conquistou o campeonato estadual em 1923, ocasionando a ira dos grandes clubes da aristocracia. Dessa forma, foi criada uma nova associação de futebol no Rio que só permitia a participação do Vasco caso houvesse a exclusão de 12 jogadores de seu elenco, todos negros ou de origem humilde e que tinham outras profissões em paralelo com o esporte. Em um ato de pioneirismo na luta contra o racismo no futebol, o Vasco negou a sua participação, fazendo com que em 1924 dois campeonatos cariocas fossem disputados em paralelo.
Além disso, o Barcelona, que é, para muitos, um dos maiores clubes do mundo e que tem uma inegável relevância internacional, é um grande exemplo de que o que define o tamanho de um clube, além de suas grandes conquistas e de um futebol encantador, passa também por sua relevância social e política. O Barcelona sempre representou a Catalunha e, mesmo que indiretamente, defendeu a sua própria cultura. Suas cores são as mesmas da Catalunha e, logo na parte de trás da gola da sua camisa, está escrito “Més que un club”, ou “Mais que um clube” em catalão, frase usada desde a Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Francisco Franco, apontando o Barcelona como um grande símbolo da luta nacionalista da Catalunha.
Até mesmo ao acompanhar o futebol atual, nota-se que na primeira rodada do campeonato brasileiro o Corinthians lançou a sua nova camiseta para a temporada: uma camiseta inteiramente branca com traços que remetem ao time da Democracia Corinthiana, o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro. Após a entrada do sociólogo Adilson Monteiro Alves para a diretoria de futebol do Corinthians, foi criada uma relação entre o novo diretor e diversos jogadores que seriam eternizados, tanto pelo seu futebol quanto pela sua representatividade, como Sócrates, Walter Casagrande, Wladimir e Zenon. Com os interesses de um jovem sociólogo alinhados com os de jogadores politizados no elenco, foi acordado entre eles que todas as decisões do clube, como regras de concentração, contratações e até o consumo de bebidas alcoólicas seriam votados de forma igualitária por todos os membros, tendo o mesmo valor para o técnico, os jogadores e os funcionários. O denominado time do povo, com o segundo maior número de torcedores do Brasil e com um enorme alcance midiático, tinha durante a ditadura militar uma democracia como modelo decisório interno.
Muitos dos jogadores importantes para o movimento participaram à época de uma palestra para explicar um pouco sobre o movimento, na qual o jornalista esportivo Juca Kfouri citou a expressão de outro jornalista brasileiro, Millôr Fernandes, dizendo que, se o Brasil continuasse lutando contra o regime militar, passaria a viver em um regime democrático. Da mesma forma, se o Corinthians continuasse do jeito que estava, passaria a viver em uma democracia, uma democracia corinthiana. Coincidentemente ou não, poucos anos depois o movimento das Diretas Já ganhou força e ajudou a restabelecer a voto democrático direto no país.
Antigamente, se discutia política junto com o futebol. E hoje se discute o que junto com o futebol? Como a poderosa Red Bull compra times no mundo inteiro e cria um grande projeto esportivo, como a Crefisa ganhou relevância financiando um projeto esportivo vitorioso ou como o Grupo City utiliza o futebol para fazer propaganda de um país inteiro.
O futebol não deixa de ser um entretenimento e não pode deixar de cumprir a sua principal função de ser um jogo, com os times focados na conquista da maior quantidade possível de títulos. Além disso, pode-se afirmar que o aumento de investimento de empresas privadas no esporte tende a profissionalizá-lo e a melhorar sua qualidade, pois, aprimorando a estrutura de treinamento e de jogo para os clubes, inevitavelmente um melhor produto será entregue ao torcedor. Entretanto, uma parte do problema se encontra aí: o futebol passa a ser integralmente um produto e esquece de que também pode ser uma expressão social.
Grande parte dos jogadores de futebol brasileiros passaram por diversas dificuldades financeiras em sua infância e tiveram desgastantes trajetórias para chegar ao sucesso. Ao contrário do que se imaginaria, muitos não se posicionam socialmente e politicamente, e parecem se esquecer de onde vieram ou imaginar que todos chegarão ao mesmo lugar que eles.
A partir de um certo momento (ou de um certo salário), nota-se a completa ausência de um posicionamento político de jogadores de futebol, com raras exceções. Nesse sentido, não se espera que as grandes figuras do esporte necessariamente precisam apoiar um candidato específico, mas poderiam se posicionar mais em causas que são socialmente relevantes, principalmente em dificuldades sociais que foram enfrentadas por muitos deles.
Por mais que não se deva discutir religião, política e futebol, vemos (talvez exatamente por isso) a peculiaridade diagnosticada na frase fixada no Twitter de Antonio Tabet, jornalista e criador do Porta dos Fundos, ao dizer que “o Brasil, o país onde política é futebol, futebol é religião e religião é política.”
O futebol há tempos deixou de ser um reflexo da sociedade e passou a ser um produto do mercado, alienado e alheio a tudo o que ocorre à sua volta. Talvez não só a política seja futebol por aqui, mas a única forma de o futebol ser político é por meio de ex-jogadores que, por meio de sua grande popularidade, se candidatam para concorrer às eleições. Fica, portanto, o questionamento: se isso ocorre mais pelo fato do futebol ter se tornado político ou se, na verdade, ao ser transformado em um produto rodeado de dinheiro, o futebol se tornou, assim como a política, apenas um grande espetáculo.
Autoria: Thomás Furtado Danelon
Revisão: Gabriela Veit e Laura Freitas
Imagem de capa: Foto de Irmo Celso/Placar _______________________________________________________________________
Referências/Fontes
Futebol e política: uma relação histórica - Factual900
Futebol e política no Brasil, uma história interligada (ludopedio.org.br)
Futebol e política: uma relação histórica - Revista Esquinas (casperlibero.edu.br)
Futebol e política se misturam? A história diz que sim (cafehistoria.com.br)
The meaning of Més que un club | Barca Universal
Vasco: "resposta histórica" é símbolo contra racismo e tratada como troféu (uol.com.br)
História do Vasco - VASCONet
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