É humanamente impossível estudar qualquer tema relacionado ao patriarcado, à luta feminista e à absorção das demandas das mulheres por parte do Estado sem ser tomada por repulsa e ódio. Sim, estou dando alimento para os conservadores que falam que as feministas são raivosas, porque se você não for, quer dizer que não entendeu a dimensão do problema. Leia o segundo artigo da Lei Maria da Penha:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (BRASIL, 2006, Art. 2°)
Na sociedade em que vivemos é preciso haver um mecanismo legal para deixar claro que as fêmeas são HUMANAS. Como é possível ler isso e não implodir de raiva? Não sou nenhuma perita do mundo judicial, mas procuro compreendê-lo melhor sob a ótica da teoria feminista materialista e esse texto é um fruto desta busca.
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Segundo Cecília MacDowell Santos, estudiosa graduada em Direito e doutora em Sociologia, pode-se definir três marcos do impacto da luta feminista na criação de políticas públicas: (1) a criação da primeira delegacia da mulher em São Paulo, em 1985; (2) o surgimento dos Juizados Criminais Especiais (Jecrims), em 1995; e (3) a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006. Esse último se tornou o maior símbolo das conquistas do movimento feminista brasileiro, usado como exemplo para mostrar o quanto as coisas já melhoraram até hoje. É preciso, no entanto, entender o contexto de sua criação e os eventos que o antecederam.
Em agosto de 2020, foi lançado o podcast “Praia dos Ossos”, que trouxe uma discussão fundamental a respeito do movimento de proteção à vida das mulheres. Dividido em oito episódios, o podcast narra os eventos que precederam e sucederam a morte de Ângela Diniz, assassinada por seu namorado Doca Street em 1976, evidenciando as mudanças sociais e culturais entre a data do primeiro e do segundo julgamento. De acordo com Eva Blay, doutora em Sociologia pela USP, foi a partir desse momento que se deu o auge da demanda pela proteção legal da vida das mulheres, sob o lema “Quem ama não mata”. Inevitável observar que foi necessário o assassinato de uma socialite branca da elite econômica para que [algumas] mulheres recebessem atenção da população comum e da mídia.
Dando um salto de mais ou menos 20 anos — nos quais o movimento feminista continuou demandando uma legislação que reconhecesse, previnisse e punisse a violência contra a mulher —, chegamos em 1995, ano em que o Brasil assina a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (popularmente conhecida como Convenção de Belém do Pará). Seis anos depois, em 2001, por conta da ratificação da Convenção, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condena o Estado brasileiro por sua omissão no caso de Maria da Penha Maia Fernandes.
Para os que não sabem da história de Maria da Penha, ela é uma mulher que sofreu dupla tentativa de assassinato por parte de seu marido Marco Antonio Heredia Viveros. Em 1983, seu agressor tentou matá-la com um tiro e, falhando, tentou eletrocutá-la enquanto ela tomava banho — Maria da Penha ficou paraplégica. Marco Antonio foi condenado em 2002 — após pressão internacional — e ficou preso só até 2004.
Assim, foi sancionada a Lei Maria da Penha no ano de 2006. Surgiram questionamentos sobre a constitucionalidade da lei sob o argumento de que ela feria o princípio da isonomia por dar foco aos direitos das mulheres e não proteger os homens vítimas de violência doméstica. Deste modo, o Supremo Tribunal Federal foi acionado e referendou sua validade por unanimidade. Atualmente, como já mencionado, a Lei Maria da Penha é usada pelos grupos progressistas como a grande medalha do movimento feminista brasileiro — e agora, com a inclusão de mulheres trans em sua redação, dos adeptos da teoria queer também.
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É claro que a LMP é crucial no combate à violência contra a mulher, isso não está em questão. A legislação brasileira é, inclusive, muito elogiada internacionalmente por sua complexidade e integralidade no que tange aos diversos tipos de violência. São necessários, no entanto, muitos questionamentos. Como se dá a aplicação da Lei Maria da Penha? A tríade prevenção-assistência-repressão é colocada em prática pelo serviço público? Os burocratas responsáveis pelo atendimento às vítimas têm treinamento sobre o tema de violência doméstica? Como os canais de comunicação influenciam na visão da população brasileira sobre o tema? Dar nome às coisas, e atenção à linguagem não é crucial para a discussão?
Nós não podemos nos dar o luxo de estarmos cômodas. A Lei Maria da Penha foi uma grande conquista, mas ainda temos muita estrada pra correr. O Estado precisa compreender o que é a violência contra a mulher, o que é o estupro e realmente mobilizar recursos para criar uma rede de atendimento integrada e efetiva para atender às mulheres. Criar legislações bonitas não é o bastante, não é isso que vai resolver a opressão feminina. É sim necessário criar os mecanismos legais para proteger a mulher, mas o gênero, origem do patriarcado, permanece.
A cidade de São Paulo é feita para carros. Tudo foi pensado para os automóveis, cada detalhe. As bicicletas não têm espaço. As calçadas são esburacadas, as ciclofaixas quase inexistentes. Da mesma maneira, o mundo é feito para os homens - e por eles. As mulheres não têm espaço, as mulheres vivem em perigo. Resolver isso não é simples. Colocar uma ciclofaixa na Nove de Julho com certeza não tornará São Paulo um ambiente super seguro para todos os ciclistas. A Lei Maria da Penha não torna o Brasil um lugar seguro para as mulheres. [1]
Redatora: Tiz Almeida
Revisores: Beatriz Nassar e Bruna Ballestro
Imagem: heraldsun.com.au
Nota [1]
A metáfora da ciclo faixa foi retirada de um clube do livro feminista apresentado pela comunicadora Feminisa. Caso tenha interesse, segue a plataforma do clube: https://www.livrarista.com/
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