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A MULHER DA CASA ABANDONADA: O QUE O CASO DIZ SOBRE O BRASIL



Atenção: essa publicação contém algumas revelações sobre a narrativa do Podcast "A Mulher da Casa Abandonada", recomendamos que você, caro leitor, escute a obra antes de realizar a leitura do texto para evitar "spoilers".



Nas últimas semanas, o podcast “A Mulher da Casa Abandonada” chamou muita atenção e criou um grande alvoroço na internet. Ele é uma produção do jornal Folha de São Paulo, elaborada a partir da investigação jornalística feita por Chico Felitti, que também está por trás de outros podcasts, roteiros e livros como “Ricardo e Vânia”, em que narra a história do pejorativamente chamado “Fofão da Augusta”. A repercussão da obra tomou proporções inéditas para o modelo, com mais de 4.5 milhões de ouvintes individuais, mas, por um lado, ela também gerou efeitos controversos que fugiram do controle de seu idealizador. O jornalista partiu de uma simples curiosidade para a descoberta digna de enredo de filme (de terror). Ele queria saber por que há uma mansão “abandonada” em Higienópolis, um dos bairros mais ricos e elitizados de São Paulo, e, em sequência, o mais importante: quem é e qual é a história da pessoa que mora nela.



O primeiro episódio, chamado “A Mulher”, apresenta ao público a figura central dessa história, a idosa que se intitula Mari e vive no casarão em ruínas. A princípio, Felitti busca se aproximar da senhora que usa uma camada espessa de creme branco no rosto e destrata desde os funcionários públicos encarregados de remover árvores em sua rua à atendente de farmácia. Ela tem uma postura irreverente, dona de si e desconexa com o estado em que sua casa se encontra. Logo, à procura por relatos de outros moradores da região, o jornalista veio a desvendar o verdadeiro nome da mulher: Margarida Bonetti. Ela tem 63 anos e é descendente do Barão de Bocaina, um influente fazendeiro, banqueiro e comerciante, muito rico, o qual nomeia uma rua no próprio bairro. Além disso, seu pai, Geraldo Vicente de Azevedo, foi um famoso médico que atuou como chefe da Santa Casa de SP e dá nome à mansão em que sua filha vive em situação precária, sem saneamento básico e entre entulhos até o momento em que foi gravado o podcast.



Após pesquisas na internet e mais conversas com porteiros e moradores do bairro, o jornalista descobre uma matéria chamada Slavery’s New Face do jornal News Week do ano de 2000. Essa, por sua vez, menciona o caso que envolve o casal René e Margarida Bonetti, ambos acusados de escravizar e maltratar uma mulher nos Estados Unidos por vinte anos, do final dos anos 70 aos anos 90. A pessoa escravizada pelo casal trabalhava como empregada doméstica da família de Margarida desde os nove anos de idade e tem seu nome mantido em sigilo para sua proteção. A partir deste achado, a investigação se aprofunda com a ida de Felitti aos EUA. Ele se encontra com a mulher de descendência latina, vizinha do casal brasileiro à época, que entendeu a situação pela qual a vítima estava passando e a ajudou com a denúncia às autoridades norte-americanas na década de 1990. Ainda no exterior, Felitti também reuniu uma série de relatos em áudio e documentos sobre o processo que aconteceu em 2000. Diante de todo esse material, tem-se o panorama do caso judicializado. O casal Bonetti, que se mudou para Georgetown, recebeu de “presente” da família paulistana de Margarida uma empregada doméstica para realizar todas as atividades caseiras. Essa mulher, que morava no porão do casal, não tinha sua documentação regularizada desde 1984 e não sabia se comunicar em inglês. Ela era explorada, não recebia qualquer pagamento por seu trabalho e era agredida física e verbalmente. Além de tudo, a vítima tinha o seu acesso à saúde negligenciado. Houve vezes em que ela foi privada de atendimento médico, o que gerou consequências tais como a proliferação de um câncer aproximadamente do tamanho de um melão em sua barriga, dentre outras complicações.



Com ajuda da vizinha latina e o testemunho da vítima, que inclusive precisou ser convencida de que o que ela vivia era uma situação de extrema abusividade, o FBI levantou uma investigação que acusou ambos, René e Margarida Bonetti. Contudo, Margarida fugiu para o Brasil para, alegadamente, comparecer ao enterro de seu pai e nunca mais voltou aos EUA. Aqui, então, a história se complica. René era o único com cidadania americana e foi julgado a 6 anos de cadeia. Margarida, entretanto, era apenas cidadã brasileira e, portanto, sua extradição para julgamento nos Estados Unidos seria inconstitucional, mediante o previsto pelo inciso LI do art. 5º da Constituição Federal: “Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.”



Apesar disso, nada impedia que Margarida tivesse sido julgada em território brasileiro pelo crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal), além dos crimes de lesão corporal (art. 129 CP ), maus tratos (art. 136 CP) e tentativa de homicídio (art. 121 e art. 14 CP), conforme as ações descritas nos documentos elaborados pelo FBI. No entanto, no mais gravoso dos casos, o período para julgamento de seus crimes está prescrito, dado que o período máximo estipulado pelo Código Penal brasileiro é de 20 anos, segundo o art. 109 caput deste dispositivo legal. Em entrevista para o podcast da Folha "Café da Manhã", Felitti atualiza a informação de que chegou a existir um inquérito policial contra Margarida pelo mesmo crime que ela era acusada nos Estados Unidos, o de submeter uma pessoa a trabalho análogo à escravidão. Contudo, esse inquérito não consta do sistema eletrônico de justiça, o jornalista apenas teve contato com um registro dele, não o documento em si, que se encontra desaparecido. Supõe-se que o inquérito foi destruído em alguma das três queimas de processo que ocorreram entre sua data de início até hoje. Em suma, porque nada fez a justiça brasileira quanto ao assunto em tempo legal, a mulher não pode mais ser legalmente julgada.



A detalhada narrativa da série de podcasts não se encerra aqui, descobre-se que René Bonetti, após cumprir com sua pena, ainda mora nos EUA e possui um cargo de diretoria em uma grande empresa que constrói satélites para a NASA. No episódio intitulado “Outras Tantas Mulheres”, Chico Felliti dá ênfase ao tema principal de sua reportagem fonográfica: a escravidão moderna. Aqui, outros casos de mulheres que passaram pelo trabalho análogo à escravidão são abordados. Foram 20, 40, 70 anos na vida dessas mulheres, em sua grande maioria, pretas, tomados e que nunca podem ser de fato compensados. A partir desse ponto, como ouvinte da série, é possível juntar vários aspectos da conduta da classe média e da elite brasileira perante o trabalho doméstico e associá-los ao ranço escravocrata que perdura na nossa sociedade. A famosa frase “ela é como se fosse da família”, que é, muitas vezes, pronunciada por patrões quando estes referem-se a suas funcionárias, é retrato do imaginário perverso que subsiste nas casas brasileiras, que nunca propriamente enxergaram o trabalho doméstico como trabalho. Ao associar uma pessoa que presta um serviço à família, a classe média e a elite reduzem à informalidade uma relação que deve ser regulada e, que, com muita luta se tornou formal com o Estatuto das Domésticas apenas em 2015. O discurso da informalidade se aproveita para mascarar abusos e situações extremas, porém não tão raras como parece, como as trazidas no podcast.



Algo curioso, retomando a narrativa do caso de Margarida Bonetti, é que a vizinhança sabia quem ela era e o que ela tinha feito. Muito antes da prescrição do julgamento da mulher da casa abandonada, grande parte da elite que vive no bairro de Higienópolis poderia ter dado fim ao silêncio afastado “tarde demais” pelo curioso jornalista. É evidente o Pacto Narcísico da Branquitude, cunhado pela doutora e psicóloga Cida Bento, no silêncio e indiferença acerca daquela mulher tida praticamente como mitológica, residente por anos na casa degradada, que parecia incomodar mais os vizinhos por seu odor e aparência contrastantes com o logradouro.


A mesma frieza e apatia que ocultou um segredo não tão secreto assim foi o que tornou a viralização da “Mulher da Casa Abandonada” um caos generalizado. Para além de memes e da “folclorização” da figura de Margarida Bonetti na internet, subvertendo a seriedade do true crime jornalístico, tanto agentes da mídia quanto a população civil e polícia se envolveram desordenadamente na história. A mansão virou um lugar praticamente “turístico” e, a partir das atenções voltadas a ela, a polícia foi ao local em uma operação para investigar estado do imóvel e realizar uma avaliação médica em Margarida para averiguar seu estado mental e físico, a fim de responder a um inquérito que situou a mulher como possível vítima de abandono de incapaz por sua família, conforme o art. 131 do CP. No fim, desde Datena, que retratou Bonetti, rasa e oportunisticamente, como uma pobre vítima e não uma pessoa que escolheu se esconder por entre as ruínas do seu passado lustroso, até a ativista pelos animais Luisa Mell, que foi resgatar os cachorros que viviam entre o lixo da propriedade sem qualquer atendimento veterinário, apareceram na casa transmitindo imagens e midiatizando toda uma situação que saiu completamente de proporção.



O fato é que o que Chico Felitti propôs como um registro documental para ilustrar não só a história de uma pessoa escravizada, mas a realidade de diversas trabalhadoras domésticas no país e todo um sistema de privilégios, poder e silenciamento, foi desviado de seu propósito nos mais diversos cantos da internet. A criação de uma lenda e relativização dos fatos em torno de Margarida Bonetti é uma das facetas da mentalidade conspiratória como a dela, que insurgiu desenfreadamente nos últimos anos. O distanciamento, portanto, do cerne da obra, é reflexo do público brasileiro talvez pouco sensível à violência aos corpos femininos e negros, em sua maioria, afetados pela cultura escravocrata que persiste nas relações de poder da nossa sociedade. Felitti frisa no início de cada episódio o caráter jornalístico, documental e sério do programa de podcast, reiterando que a Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas retratadas, e entendo que a “culpa” pela forma como o seu trabalho repercutiu não deve recair sobre a sua realização. A recepção do ouvinte é incerta e "A Mulher da Casa Abandonada" poderia não ter causado tanto barulho como causou, assim como tantos outros documentários de true crime disponíveis em diversas plataformas. Uma história como essa, idealmente, não deve ser consumida como entretenimento, mas como um registro jornalístico com teor informativo e educacional. O autor, deve ter a maior perícia possível para que a narrativa seja transmitida com responsabilidade e com base nos fatos comprovados acerca dela. Acredito que Felitti fez sua parte quanto a isso.



Uma das maiores críticas comentadas em círculos de debate virtuais é quanto ao último episódio no qual há uma longa entrevista com Margarida Bonetti, em que ela conta a sua versão do caso. Ele é justificado como parte da atividade jornalística, uma vez que deve ser dado a todos os lados um espaço para resposta e posicionamento. Apesar de inegavelmente controversa, a entrevista contém uma série de adendos feitos por Chico Felitti quando Margarida fala algo que vai de encontro com os fatos e documentos oficiais sobre o caso. Pessoalmente, acho um ótimo exercício escutar com atenção a narrativa da senhora. A forma como ela fala a denuncia por si só. É totalmente desconexa da realidade e, além de conspiratória e absurda, a versão posta conta com traços marcantes do imaginário cruel, insensível, elitista e escravocrata da mulher. Enfim, é válido, ainda mais com os comentários do jornalista ao longo da gravação escutar o discurso fortemente distorcido como base de análise das micro violências ignoradas por Margarida para ela mesma se defender.



A "Mulher da Casa Abandonada" trata de um tópico sensível e muito caro ao Brasil. Seu tema deve ser debatido e histórias como a abordada não podem passar em branco. Quanto a Margarida, a justiça não foi feita e não mais poderá, ao menos por vias judiciais. As vidas de muitas pessoas, contudo, podem ser mudadas a partir da consciência a respeito da forma como se dá a escravidão contemporaneamente, através da informalidade. Durante muitos anos, a cumplicidade com esse tipo de crime se deu em forma de silêncio. O aprendizado, aqui, portanto, é enxergar como se dão as relações do trabalho doméstico que estão próximas de nós para agir, caso necessário. Após a repercussão do podcast, o número de denúncias de trabalho análogo à escravidao aumentou mais de 67%, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT). Isso demonstra o quão poderosa é a informação e a relevância de um trabalho como o realizado para o impulsionamento de urgentes transformações sociais.




Autoria: Maria Eduarda N. Freire


Revisão: Beatriz Nassar


Imagem de capa: Reprodução Editoria de Arte da Folha de São Paulo



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Referências:


NATALIE VANZ BETTONI. Denúncias de trabalho escravo doméstico duplicam após lançamento de A Mulher da Casa Abandonada. Folha de S.Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/07/denuncias-de-trabalho-escravo-domestico-duplicam-apos-lancamento-de-a-mulher-da-casa-abandonada.shtml>. Acesso em: 9 ago. 2022.



G1 SP. Polícia faz operação em casa abandonada em Higienópolis e investiga abandono de incapaz. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/07/20/policia-faz-operacao-em-casa-abandonada-em-higienopolis-e-investiga-abandono-de-incapaz.ghtml>. Acesso em: 9 ago. 2022.


São Paulo. A Mulher da Casa Abandonada: desdobramentos, com Chico Felitti. Café da Manhã. Podcast, 26 de jul. de 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/5mVdNbEHbciDmTuORLfZeD?si=wMUlypBdSOiKGECwABQp2w



São Paulo. A Mulher da Casa Abandonada. Narração: Chico Felitti. Disponível em: https://open.spotify.com/show/0xyzsMcSzudBIen2Ki2dqV?si=7c2d7dad13c14bfa




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