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A POLÍTICA NA MEMÓRIA BRASILEIRA


ㅤㅤㅤㅤA memória é um local de disputa política. A memória, enquanto construção coletiva, reflete e contesta as relações de poder vigentes. Por isso, torna-se um campo de disputa simbólica, não apenas detentora de um controle popular, mas também reflexo do entrelaçamento das dinâmicas econômicas e sociais contemporâneas e prévias. Assim, a memória atua como causa e consequência de qualquer fenômeno, integrando as noções morais e identitárias que constituem os sistemas de cada época. O que facilita a manutenção de uma organização social é a sua capacidade de apresentar-se como natural, e o Estado atual, como forma política do capitalismo, apresenta-se em sua vigência como inato, tal qual o próprio sistema capitalista e as recorrentes medidas neoliberais que se popularizam entre diversos governos globalmente.

ㅤㅤㅤㅤEm especial na conjuntura latino-americana, observa-se uma crescente desestruturação de serviços públicos em prol de uma racionalidade neoliberal que procura introduzir na normatividade as relações de mercado. A lógica privatista que se faz presente nos recentes governos faz parte de um mecanismo que usa do Estado (ou de sua abstenção) para garantir que o aparato jurídico e político operem conforme o ótimo mercado, ponto que é legitimado pelo público em decorrência da extrapolação da mentalidade corporativa para a ética individual. Nesse aspecto, procede que tal ideal empodere uma globalização que igualmente sustenta e converge conceitos como Meritocracia e Sociedade do Desempenho como ideais intrínsecos nas relações humanas. É fato que na periferia do capitalismo é necessário analisar cada situação com base não apenas nos fatores locais, como o histórico político-social de cada país, mas também as influências imperialistas que assolaram (e ainda assolam) econômica e culturalmente a América Latina em sua totalidade.

ㅤㅤㅤㅤDestacam-se, nesse âmbito, as imposições efetuadas pelos Estados Unidos desde a Doutrina Monroe, no início do século XIX, as intervenções sob fachada da Política da Boa Vizinhança até o consequente estabelecimento como potência econômica e cultural na atualidade. Tendo em vista o mapa político da América Latina, que embora ainda exiba predominantemente governos de Esquerda e igualmente ampara a radicalização da agenda neoliberal, nota-se um terreno fértil para a re-ascensão de movimentos de extrema-direita, que expressam-se como sintomas, não causas, da atual fase do capitalismo. Ou seja, são manifestações reativas diante do esgotamento das promessas neoliberais — como crescimento, estabilidade e inclusão —, e da incapacidade das democracias liberais de responder às fraturas sociais intensificadas por décadas de reformas econômicas regressivas. Assim, o avanço desses movimentos não representa uma ruptura do sistema, mas antes sua continuidade degenerada, onde a violência simbólica e política se tornam instrumento de manutenção da ordem e não sua negação.

ㅤㅤㅤㅤAo contrário do pensamento comum, a queda da bolsa em 1929 representou não uma crise do capitalismo, mas sim uma crise liberal. O capitalismo estendeu-se para além de um mero sistema, tornando-se uma espécie de relação social consolidada no ideal de propriedade que se alimenta da desigualdade social, sendo assim fortalecido por crises globais. É evidente que o período entre guerras representou para as Américas uma possibilidade de autonomia, uma vez que a Europa permanecia devastada. Dessa forma, o clima de euforia econômica fomentou o American Way of Life de tal modo a correlacionar o sucesso ao consumo, usufruindo da mentalidade liberal para promover a expansão do crédito bancário barato, resultando na consequente intensificação dos juros que levou à quebra da bolsa. Com a fragilização da fé nas democracias liberais, alternativas de caráter intervencionista começaram a tomar espaço. Para os EUA, o Keynesianismo foi, provisoriamente, efetivo. Já no caso brasileiro, a desestabilização da política do Café com Leite debilitou a estrutura oligárquica, possibilitando a revolução de 1930 e o protagonismo de Vargas.

ㅤㅤㅤㅤEssa ruptura com a crença liberal abriu margem para o crescimento de regimes autoritários. Enquanto o fascismo ganhava força na Europa e o Socialismo Soviético mantinha sua economia inabalada mesmo após a crise de 1929, a disputa de ideais avançava rumo à América Latina ainda antes da Segunda Guerra. É fato que a Doutrina Monroe visava não apenas impedir a intervenção europeia, mas sim fazer com que os EUA ocupassem seu local como interventor, pressionando os países ao sul a se alinharem a seu modelo econômico. ㅤㅤㅤㅤNesse sentido, movimentos de caráter totalitário e anticomunistas, como a Ação Integralista Brasileira, apoiados pelo governo estadunidense, sustentaram a formação do populismo, que, mesmo com suas nuances locais, mantinha em seu cerne uma doutrina política elástica, vagando entre Direita e Esquerda conforme a conveniência. Com a busca latino-americana pela “modernidade” para lutar contra o subdesenvolvimento, a industrialização e urbanização ocorreram em um processo rápido e desestruturado, tentando conciliar a dicotomia de uma economia que se tornou ao mesmo tempo moderna e arcaica. Benefícios legislativos são trocados por submissão política, veículos midiáticos são controlados por departamentos de intensa propaganda e direitos trabalhistas convergem em governos que conciliam liberalismo e conservadorismo, Esquerda e Direita.

ㅤㅤㅤㅤSendo assim, são evidentes as marcas contemporâneas que refletem o contexto abordado, estando, entretanto, sob a atual ótica do neoliberalismo. A influência estadunidense, que se estende desde antes da crise de 1929 até a atualidade e impõe, direta ou indiretamente, a perspectiva de que os mais adaptados são capazes de obter sucesso em uma lógica social que remete ao mercado, acaba por aludir ao evolucionismo biológico do Darwinismo social. Isso ocorre pois, ao abdicar de medidas reparatórias e redistributivas, o Estado transfere à lógica do mercado a decisão sobre quem merece viver com dignidade. Nesse vácuo de proteção social, instaura-se uma necropolítica neoliberal, em que o valor das vidas é medido por sua produtividade, eficiência e competitividade. Assim, corpos e existências que não se alinham aos parâmetros de rentabilidade passam a ser descartáveis — não por ação direta do Estado, mas por sua omissão estratégica, que naturaliza desigualdades e legitima o abandono. Essa dinâmica se torna ainda mais evidente na América Latina, onde o histórico de violência estrutural se entrelaça com as novas formas de gestão da morte promovidas pelo capital.

ㅤㅤㅤㅤA memória é local de disputa política, e no cenário em que as amarras ideológicas das décadas passadas persistem na racionalidade das massas, facilmente manipuladas por influências externas e pelos detentores dos meios de produção, nota-se o caráter quase dialético da política da economia. Dessa forma, a memória, longe de ser apenas uma construção passiva, constitui um instrumento central para compreender as permanências e rupturas nos projetos políticos. Reconhecer sua disputa é essencial para interpretar tanto as dinâmicas brasileiras quanto as articulações globais do poder. Enquanto a memória for silenciada, a história continuará sendo escrita pelos vencedores — e o futuro, moldado pelas mesmas mãos que oprimem o presente. Toda memória é uma escolha, e onde há escolha, há política. Esquecer também é uma forma de poder e, em especial na América Latina, lembrar é resistir. Que permaneça em sua memória que toda resistência é uma ameaça aos que constroem o esquecimento como política de Estado.






Referências:

BRESSER PEREIRA, L. C. Crise e renovação da esquerda na América Latina. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 21, p. 41–54, out. 1990. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/ZgZvpsdkjtJvFwcrDLtjtsF/

JUNIOR, A. G. Parlamentarismo às Avessas - História. Infoescola. Disponível em: https://www.infoescola.com/historia/parlamentarismo-as-avessas

PIRES, M. J. DE S.; RAMOS, P. O termo modernização conservadora: sua origem e utilização no Brasil. Revista Econômica do Nordeste, v. 40, n. 3, p. 411–424, 2009. Disponível em: https://www.bnb.gov.br/revista/index.php/ren/article/view/367/315

Livros:

SALGADO, T. S.; Rumo à barbárie neoliberal. [s.l.] Telha, 2023.

CASTELLS, M. Ruptura. [s.l.] Editora Schwarcz - Companhia das Letras, 2018.

FERREIRA, J. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 60-124, 2001.


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