
A delegação das tarefas de cuidado - ligadas ao lar, à família e aos filhos - tem socialmente um traço de gênero: à mulher é associada a realização de funções do âmbito doméstico, ou seja, de cuidar das coisas. Nessa construção, o homem é visto como o responsável por prover a renda e ocupar outros espaços, dinâmica que ainda está presente no imaginário social.
Contudo, além de um arranjo de gênero, as tarefas de cuidado obedecem historicamente a uma lógica racial. Mulheres pretas sempre estiveram vinculadas ao ambiente doméstico, especialmente exercendo funções em outros lares. Desse modo, a imagem da mulher preta como “mãe preta”, construída no período de escravidão, recebeu novos contornos, mas permanece até os dias atuais. De ama de leite a babá, percebe-se a continuidade de um modelo em que essas mulheres são incumbidas de “estar à disposição” e de cuidar do filho da patroa.
Assim, desassociar mulheres negras das tarefas de sujeição, cuidado e abnegação é uma realidade distante da atual, o que pode ser atestado pela esfera do trabalho. Angela Davis, em “Mulheres, Raça e Classe” expõe que “O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos de escravidão”. Nesse sentido, elas ainda têm de deixar suas casas e filhos para servir a classe média branca. De sinhá a patroa, percebe-se quem se beneficia desse serviço.
Desse modo, essa racialização implica uma visão estereotipada e elitista de trabalhos como o de empregada doméstica ou babá. A ideia de que essas trabalhadoras são “quase da família” e a tentativa de tirar o caráter formal do trabalho ou associá-lo a uma profissão de menor estima e valor é um dos reflexos desse sistema de herança escravocrata. Não à toa, a efetivação dos direitos trabalhistas de empregadas domésticas só se deu em 2015, com a PEC das Domésticas.
Por fim, esta reflexão pode ser sintetizada na seguinte passagem do artigo “Recipientes para alimentar a alma: mulheres negras e a racialização do cuidado”: “A figura da mãe preta, ainda que tenha adquirido novos contornos em nossa história recente, mantém o estigma da subordinação e a naturalização da subserviência. Não basta colocar o cuidado como questão política, se não houver questionamentos sobre quem se beneficia desse serviço. A ‘mucama permitida’ (GONZALEZ, 1980) precisa dar lugar a outras possibilidades de existência de mulheres negras, o combate ao racismo, machismo sem dúvidas perpassa a desconstrução de tais representações.”
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