No texto de hoje, nosso redator Gustavo Laffitte traz as mais diversas referências culturais e literárias a fim de traçar um paralelo com a pandemia de COVID-19 que assola os dias atuais. Encante-se e surpreenda-se com este artigo, que irá enriquecer sua mente e enxergar melhor o mundo que lhe foi dado.
Quando o Excelentíssimo Doutor Simão Bacamarte, professor emérito da Universidade de Coimbra, emplacou de imediato, sem clemência nem misericórdia, sua célebre “Guerra à Loucura”, de certo sabia, intelectual que o era, que estava apenas dando prosseguimento a um esforço secular originado nos áureos tempos da Grécia Antiga.
Talvez o pioneiro de tais estudos tenha sido o próprio Tales de Mileto, tido por Aristóteles como o ‘primeiro filósofo’:
τίς εὐδαίμων, "ὁ τὸ μὲν σῶμα ὑγιής, τὴν δὲ ψυχὴν εὔπορος, τὴν δὲ φύσιν εὐπαίδευτος" Que Homem é feliz? “Aquele dotado de um corpo saudável, uma mente engenhosa e uma natureza dócil”
- MILETO, Tales De. Porrete sobre pedra, ~600 a.C.
Séculos adiante, os romanos, sucessores espirituais dos helênicos, dariam continuidade a esta importantíssima escola. Foi o poeta Juvenal que alcunhou, em sua décima sátira, um dos provérbios mais populares da nossa cultura ocidental:
orandum est ut sit mens sana in corpore sano
“Orai por uma mente sadia em um corpo sadio”
- IUVENALIS, Decimus Iulius. Sátiras. Séc. II d.C.
Com o tempo, a genialidade de seu verso foi transformando-se, pela impureza da tradição oral, no conhecido ‘Mente sã, corpo são”. Não obstante, o fato de tal ensinamento ter sobrevivido ao teste do tempo já comprova o seu valor universal.
Contudo, para além dos grandes gregos, romanos e troianos, é evidente que o Dr. Bacamarte tenha tido uma forte influência de um Sr. Brás Cubas (trata-se do autor brasileiro, seu contemporâneo, e não do explorador português do Século XVI, ilustre fundador da cidade de Santos). Colegas de universidade nas terras lusitanas, é certo de que os dois acadêmicos tenham compartilhado ideias e teoremas nas noites boêmias regadas a bacalhau com bagaço. De fato, exatamente um ano antes do início da empreitada do Dr. Bacamarte, o Sr. Brás Cubas já havia introduzido à sociedade literária o seu muito estimado “Emplastro”.
Trata-se da ideia - exposta no romance realista Memórias Póstumas de Machado de Assis - de um antídoto contra todos os males do homem. Um fim definitivo à tristeza, ao mal-estar, à raiva e à loucura; às enfermidades demoníacas como a lepra e a cólera, o retardo mental e a pequenez humana. Infelizmente, sua fórmula é, evidentemente, de uma enorme complexidade, e somente homens dotados de um intelecto massivo, tal como o Dr. Simão Bacamarte, seriam candidatos a compreendê-la. Não há dúvida de que o Emplastro tenha composto parte essencial do método médico introduzido na Casa Verde do nosso Doutor Simão.
Mas os anos se passaram em vão, e a Humanidade hoje se encontra mais distante ainda de curar as dolorosas enfermidades do Homem. Nosso Século, nos foi dito desde a infância, é o Século da Depressão. Não a econômica, pelo visto, mas a psíquica. A ansiedade assola todo e qualquer indivíduo inserido no mundo pós-moderno, enquanto o Tédio, demônio baudelairiano, já adquiriu status de pandemia segundo as organizações mundiais da saúde. Estamos afundando em areia movediça, psicológica, ilusória, e não há corda nem cordão que nos puxe de volta à terra firme.
Contrariando mais uma vez o bordão do cavalo de Calígula, “pior que tá não fica”, uma verdadeira peste bíblica bate à porta das nações desenvolvidas. É o famigerado Coronavírus, ou CoVid-19, ou Coronga Viro, ou até “vírus chinês” aos que quiserem dar tiros em judeus. Uma síndrome respiratória aguda e grave, que em suma te afoga feito peixe fora d’água. Uma morte dolorosa, uma doença sem vacina, um retorno aos tempos gregos. Os saudosistas, adeptos da retórica do “na minha época”, devem estar sendo massacrados pela visita do irmão levado e maldoso da nostalgia, se bem que nem eles passaram por situação similar, salvo os que já eram nascidos nos tempos da gripe espanhola (e que provavelmente não sobreviverão a essa).
Serão meses, talvez intermitentes, de isolamento social. Ruas desertas, distância entre os transeuntes, apreensão intensa de tosses e espirros alheios, passos ligeiros nas estações de metrô e nos pontos de ônibus. O medo de infectar-se - e de infectar o outro - é grande. Maior ainda é o medo dos ditos realistas (no jargão das relações internacionais) com a derrocada da nossa economia. Tais realistas, é certo, habitam o mundo de uma lua sem coração. De qualquer forma, o nosso predicamento é sem dúvida a quebra de um paradigma, um divisor de águas para os tempos vindouros, e mudanças de fato virão. Mais do que contar os mortos dentre os vivos, é importante refletir sobre os elementos do mundo antigo que não sobreviverão a esse choque da realidade. Até mesmo ao autor deste escrito, membro ilustre da elite literária brasileira (que de brasileira tem muito pouco) do Século XIX, algumas verdades revelaram-se incontornáveis. A importância de um sistema de saúde universal, a fragilidade de uma economia de mercado, a efemeridade inerente da vida humana; fatos estes que agora creio ser impossível questionar.
Talvez a próxima calamidade nos comprove, de uma vez por todas, a circunferência do globo terrestre. Não obstante, uma outra reflexão, mais intuitiva, é sobressalente nesta quaresma quarentenada, que vê chegando a Páscoa e nem pensar em visitar os avós…
Para qualquer um que habite um grande centro urbano - caracterizado na televisão pela violência onipresente, pelo perigo em cada esquina, pela poluição que sobe às narinas e corrói os pulmões - imagino que não vejam tanta diferença assim no roteiro de teatro encenado pelas pessoas na rua. Estão agora muito mais vazias, é claro, e as muvucas deixaram de ser um problema. Mas o distanciamento social, o medo do outro, o estado de alerta com que andamos pela cidade, tudo isso já estava muito presente antes mesmo de qualquer vírus letal. As pessoas já tinham medo umas das outras como se fossem infectar-se, já temiam o que jazia do outro lado do alto muro coberto de arames farpados e câmeras de segurança. Afinal, não fosse assim, não haveria muro.
Talvez esses tempos de isolamento nos façam voltar à rua com menos medo, menos apreensão, menos recato, mais camaradagem. Talvez saiamos por aí acenando a todos com quem cruzamos, numa deliciosa sucessão de “bons dias” sinceros e carinhosos. Talvez, como diz aquela péssima música de Zeca Baleiro, saiamos beijando o português da padaria, batendo na porta dos vizinhos e mandando flores aos delegados (calma lá, também não é pra tanto, flor pra miliciano nem se for no velório). Talvez a ‘tempestade perfeita’, para além de ressaltar a insustentabilidade do nosso regime liberal, também ateste que, acabada a noite do mundo, amanhece o dia. Mas assim caímos em pura e plena especulação romântica.
A verdade é que o mundo voltará ao normal. Talvez não o mesmo normal, talvez tudo seja diferente de fato. Mas não se pode negar que, mesmo após as possíveis milhões de vítimas do famigerado Covide, ainda teremos 10 milhões de vítimas da fome ao ano. É claro, caro leitor, que nenhuma delas será a sua avó. Mas é. Sua avó, o seu avô, o seu irmão, a sua irmã, o seu pai, a sua mãe, a sua querida, o seu cheiroso, o seu cachorro. Estão todos morrendo, esfomeados e largados enquanto o mundo dos bancos éticos organiza o seu carnaval de caridades. A nossa pátria amada voltou ao mapa da fome, alas, mas o jornal já não quer falar disso como o fazia no pré-Lula. Mais do que isso, quem não for avestruz de enfiar a cabeça no chão com o bumbum virado pro céu consegue perceber que a crise não é o vírus. Afinal, existe coisa mais boba do que um vírus?
Um ser que nem para ser considerado vivo, uma entidade primitiva, desprovida de constituição celular independente, que pode acabar com a sua vida. Não, não. A crise é sistêmica. Basta olhar o índice de desigualdade através das últimas décadas, o índice de acúmulo de riqueza. Sabe qual é o produto ‘número um’ na linha de produção do Brasil de hoje? Milionários. Somos uma fábrica de milionários. And business is crackin’!
Frente ao mundo que nos foi dado, em bandeja de prata a cabeça degolada da galinha da história, não há caminho senão um descaminho, no pleno sentido legal do termo. Aprendamos com o vírus, destruamos para construir o que nos pertence, o que nos é legítimo, o que se faz justo a todos. Destruamos para desvelar a verdade, não disfarcemos o estado das coisas para somente levantar a voz quando já for tarde demais. Façamos como nos foi dito, unamo-nos! Pois se seguirmos a velha e sovada doutrina do mens Sadia™ corpus sadicus, continuaremos vivendo da ilusão que mascara o que há de podre nas mentes sãs e esbeltas, a mesma ilusão que condena à morte a incontornável saúde dos doentes.
Foto da capa: Tatyana Sinyagina
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