Com o anúncio do fim do motim dos policiais no Ceará, nosso membro de projetos, Mateus Getlinger, apresenta uma reflexão a respeito do futuro do Brasil a partir de uma análise das influências constitucionais e da atual conjuntura política na segurança pública.
Na última quarta-feira (19), o senador da República Cid Gomes (PDT-CE) foi baleado após tentar furar com uma retroescavadeira um bloqueio feito por policiais no 3o Batalhão da Polícia Militar, em Sobral (CE), que reivindicavam reajuste salarial da categoria, que não ocorre há mais de cinco anos no estado. O senador chegou ao local conduzindo a dita retroescavadeira, somando ao caos da situação, e concedeu, por meio de um megafone, cinco minutos para que os policiais cancelassem o bloqueio. A confusão se alastrou e, não atendido no prazo estipulado, Cid Gomes avançou sobre o grupo de grevistas. De dentro da multidão, mais de um homem armado disparou contra a retroescavadeira, estourando o vidro e atingindo duas balas no senador, alojando uma em seu peito esquerdo e outra na clavícula.
Mais absurdo do que isso talvez seja a manchete que chegou horas antes naquela tarde: policiais encapuzados, com seus rostos cobertos por balaclavas e capacetes, ordenaram que os comércios da cidade fechassem as portas, impondo medo sobre a população. Ou ainda que viaturas tiveram seus pneus furados pela manhã por policiais em greve, impossibilitando o serviço.
Por mais absurdo que seja um senador da República avançar sobre grevistas com uma retroescavadeira e ser baleado, precisamos lembrar que estamos falando de Cid Gomes no fim das contas. Sua atitude pavio-curto e sua figura de “coronel machão” não são ideias novas, trata-se de um modus operandi próprio. O fato de Cid ter saído do aeroporto de Sobral, avistado uma retroescavadeira e tomado a decisão de conduzi-la até o local da confusão já mostra uma atitude performática, pouco consequente e determinada a “resolver a situação com as próprias mãos” do senador, que tem pouca relação com a complexidade da realidade.
Nunca a frase “entender o Brasil é para os fortes” fez tanto sentido nas redes sociais. O que vimos foi mais um capítulo na polarização do país, no qual a internet se dividiu entre aqueles a favor da atitude da polícia, vendo o ocorrido como legítima defesa, e aqueles contra os tiros disparados. Mas, como qualquer situação que diz respeito ao cenário público nesse país, a questão é muito mais complexa do que aparenta.
É preciso, inicialmente, entender como a polícia é estruturada e organizada no Brasil. A partir da Constituição Federal de 1988, nos artigos 5o e 6o, a segurança tornou-se um direito essencial e universal, vinculado à cidadania, mas esse tópico será melhor abordado somente no artigo 144o, onde é feita a divisão e atribuição específica de cada polícia na segurança pública. A divisão de responsabilidade mais importante para nós nesse momento é aquela entre a Polícia Civil e a Polícia Militar. Ambas são atribuídas à gestão dos governos estaduais, mas a Polícia Civil (junto com a Polícia Federal) é uma polícia judiciária, que transforma fatos sociais em fatos jurídicos, enquanto a Polícia Militar, como o nome sugere, é uma polícia formada numa lógica militar.
Na prática, o que isso quer dizer é que a Polícia Civil é responsável por lidar com as situações depois do ocorrido, isto é, liderar investigações, perícias, abrir boletins de ocorrência, entre outros, enquanto a Polícia Militar é responsável pelo patrulhamento ostensivo, ou seja, por lidar com as situações no momento em que elas ocorrem. Portanto, é quem vai sair nas ruas com as viaturas patrulhando a cidade e quem responderá com atendimento ao chamado do 190. Na prática, a eficiência desse sistema é limitada, apresentando inúmeras falhas, abusos de poder e confusão de escopo de atuação.
Dada essa separação de responsabilidades e competências, há um detalhe muito importante nessa história: o direito à greve - a interrupção coletiva do trabalho para pressionar o empregador a aceitar reivindicações - é vedada a Policiais Militares pela Constituição. Como militares (portanto, assim como as Forças Armadas), os oficiais não têm direito à sindicalização ou a outros mecanismos de associação, portanto não cabendo lutar por direitos pelas mesmas vias usadas por civis. O motivo é bastante claro: sendo a PM o órgão responsável pelo enfrentamento direto ao crime, a partir do atendimento ao 190 e patrulha ostensiva, e, em outras palavras, é a força de controle da “ordem social”, sua ausência provoca pânico e medo na população. Basta lembrarmos do episódio ocorrido em 2017, no Espírito Santo, quando estima-se cerca de 215 mortes violentas durante o período de greve da Polícia Militar, que durou aproximadamente 20 dias. Agora, no Ceará, registrou-se 51 mortes em apenas 48 horas, 170 após uma semana desde o início da greve e 364 até o dia 25 de fevereiro. É um aumento de 138% comparado ao mesmo período no ano anterior.
A medida constitucional que proíbe greve dos militares têm se mostrado relativamente cumprida ao longo dos anos, mas temos observado um aumento na frequência recentemente. De acordo com estudo do professor José Vicente Tavares dos Santos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com base em dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), de 1997 a 2017, o Brasil passou por 715 greves policiais, das quais apenas 52 foram da Polícia Militar, como evidenciado em reportagem da Revista Piauí.
O que resta então é a organização de associações sem caráter sindical e sem legitimidade técnica (não podem entrar com uma ação no STF, por exemplo). Portanto, o que temos observado ao longo dos anos é um acúmulo de diversas demandas corporativas muito importantes para os policiais militares que, sem um espaço formal e institucional de reivindicação, tem encontrado nessas associações uma abertura e, através de deputados e vereadores ligados à Bancada da Bala, atingido diferentes casas legislativas no país. Se avolumam demandas de ordens múltiplas como questões salariais, de assédio moral e sexual, rotatividade de policiais, saúde mental, proteção social, política e desenho interno da organização, entre outras.
A relação tem ficado ainda mais tensa nos últimos anos. Em abril de 2017, os ministros do STF declararam inconstitucional o direito de greve de quaisquer servidores públicos de órgãos de segurança, proibindo a paralisação não só da Polícia Militar, mas de qualquer outra polícia. A partir dessa decisão, toda greve realizada pela polícia é entendida como motim. Além disso, o Ministério Público do Ceará (MPCE), em fevereiro deste ano, alguns dias antes do ocorrido em Sobral, emitiu um ofício recomendando que o comandante-geral da Polícia Militar impedisse que policiais promovessem manifestações com fim de realizar greve, buscando neutralizar a atuação das associações informais. A medida veio em resposta às manifestações que se iniciaram no dia 6 de fevereiro por reajuste salarial, que estavam com negociações ainda em andamento.
Finalmente, o que pode provar ser o mais danoso de toda a situação das polícias no Ceará é o efeito que esse episódio terá nos outros estados da federação. Como evidencia o texto do jornal O Estado de São Paulo, com apoio político reforçado, policiais já pressionam 12 estados por reajustes salariais. Entre eles, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO-MG), estado que enfrenta uma das piores crises fiscais atualmente no país, com o 13o atrasado para boa parte do funcionalismo público e com salários parcelados desde 2016, aprovou um projeto de reajuste de 41,74% para servidores da segurança pública, após pressão intensa dos órgãos respectivos no estado.
De acordo com Renato Sérgio de Lima, professor da FGV-EAESP e diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Bolsonaro tem justamente feito uso das demandas dos policiais para enfraquecer governadores, em especial os de oposição, como Camilo Santana (PT-CE) e Rui Costa (PT-BA).
Caso as demandas não sejam atendidas, podemos estar diante de uma situação de espalhar greves de policiais por todo o país, correndo o risco de beirar justificativas para uma situação de estado de sítio no país ou uma ordem de GLO (Garantia de Lei e Ordem) nacional, realizadas exclusivamente pelo presidente da República em situações quando há um esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, concedendo poder aos militares para que possam atuar com poder de polícia por um tempo determinado.
A minha tentativa neste artigo, portanto, não é de fazer uma defesa da categoria dos policiais ou defender a atitude de Cid - mas de mostrar que o episódio da retroescavadeira que marcou tanto a imprensa na semana passada faz parte de um contexto mais amplo de anos de negação e travas jurídicas às demandas feitas pelo setor dos policiais militares. O que é importante compreender é que os direitos reivindicados são bastante legítimos, mas a forma como a mobilização dos PMs foi feita recentemente virou combustível para uma crise institucional de segurança pública no estado do Ceará. A resposta de Cid Gomes apenas evidencia que a violência virou a linguagem corrente não só no campo da segurança, mas no debate político como um todo no país. Isso é o mais preocupante para os anos que vão se seguir na política brasileira.
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