A nossa redatora Dominique Mattos relata os perigos do período da pós-verdade em que vivemos. Em um mundo globalizado onde todos são capazes de produzir e compartilhar o que querem, não há espaço para a ingenuidade na internet e redes sociais.
“O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.”
Em algum momento, durante a sua vida, você já ouviu ou leu esses versos de Augusto dos Anjos. Geralmente usados como aviso, quem os fala pressente que o pior está por vir: não confie nas pessoas integralmente, não espere que ela sempre estará lá por você, ela pode ser seu pior inimigo no dia seguinte. Mesmo que, atualmente, nos encontremos em tempos muito diferentes do século XX antes da Primeira Guerra, o comportamento doloroso se estende até os tempos modernos e tecnológicos. O grande espelho desse processo é a internet e as mídias sociais, em que diariamente pessoas comuns se tornam sujeitas a toda e qualquer tipo de crítica - por bem ou por mal, corretas ou totalmente distorcidas.
Um dos exemplos mais recentes - e interessantes - da prática positiva da mídia social na internet para figuras não-públicas é o fenômeno da página “Desenhos do Douglas”. Em linhas gerais, o irmão de Douglas, Wellington Henrique da Silva, criou uma página do Facebook para postar os desenhos do irmãozinho de 7 anos, o qual ele considera muito talentoso. A criança, de origem humilde e interesse puro em cartoons, logo ganhou atenção do público do Facebook com seus desenhos, chegando a alcançar mais de um milhão de usuários em pouco tempo. Páginas famosas e desenhistas viram o trabalho, deram uma força e mandaram várias mensagens, além de darem presentes para que a criança continuasse a fazer o que gosta. E esse movimento talvez seja uma das coisas mais incríveis que a internet proporciona: reconhecimento de pessoas que talvez nunca teriam isso por não terem apoio de instituições e empresas e a esperança de que podemos nos orgulhar de algo e ainda promover visibilidade de coisas que importam. No campo da política, isso também é algo muito comum: muitos ativistas ganharam voz e espaço no mundo institucional pela sua relevância enquanto atores do mundo virtual.
Porém, não há apenas indivíduos bem-intencionados e conscientes na internet. Para isso, o dicionário da Oxford define muito bem o momento em que vivemos: a pós-verdade. O termo é um substantivo que, segundo o dicionário, “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Tanto esse termo quanto as famosas “fake news” já estão desgastados depois de anos intensos de crise social, institucional e política. Não deixam de ser verdadeiros, contudo. O caso mais recente de prática negativa - e possivelmente o mais revoltante - é o do novo youtuber Nilson Izaias, de 72 anos, que ganhou mais de 3 milhões de inscritos com o seu vídeo fazendo um slime. O vídeo, que ganhou fama na primeira semana de fevereiro, rendeu ao senhor inúmeros fãs e até mesmo vídeos com outros youtubers brasileiros famosos.
O que surpreendeu de forma negativa foi a resposta política que deram ao novo rosto viral: algumas contas do Twitter (agora excluídas ou bloqueadas) lançaram capturas de tela na rede social com mensagens e atividades que comprovariam que Nilson era, além de um eleitor do Bolsonaro, um pedófilo. Outras contas menores surgiram alegando que conheciam o homem, reforçando a tese inicial. Muitos usuários que abraçam as causas anti-pedofilia e outros anti-Bolsonaro logo tomaram o conteúdo como verdadeiro, passando a ameaçar e atacar virtualmente o ex-funcionário público, que postou um vídeo se retratando de forma triste. Até então, ninguém conseguiu confirmar a veracidade dos comentários e a única coisa que se sabe é que provavelmente todo o conteúdo é manipulado - é um tipo de fake news.
E, como se não fosse suficiente, recentemente foi criada uma conta no Twitter que seria dele - mas que ainda não se sabe a verdade. Nesta conta, o senhor de 72 anos estaria seguindo perfis mais alinhados à “direita”, como Isentões, Caneta Desesquerdizadora, Olavo de Carvalho, entre outros. Algumas pessoas e jornalistas alegam que isso tudo pode ser uma estratégia de cyberbullying atrelada ao jogo político deste lado do espectro político, usando de bode expiatório uma pessoa inocente - até que se prove concretamente o contrário - que não se manifesta politicamente, criando boatos para que supostamente a própria esquerda o criticasse e tivesse que sofrer posteriormente com a sua irresponsabilidade na internet. Num mar de teorias e embates, todos seguem sem uma resposta, mas completamente estarrecidos de desconfiança do opositor e do aliado. Seja qual for o resultado, esse é um caso de como uma exposição feita de forma descuidada e até inocente pode gerar mazelas incontáveis causadas por aqueles que querem fazer uma justiça “informal” valer, sem usar de meios válidos para isso, como SaferNet, e por aqueles que darão o melhor de si para deslegitimar seu opositor, mesmo que tenham que usar da mentira para tal.
Cada vez mais, nós, enquanto indivíduos e usuários de redes sociais, confirmamos e reforçamos nossas paranóias diárias sobre termos nossas falas distorcidas e manipuladas a qualquer momento, isso quando nós não somos os perpetuadores da mentira e falta de informação. Enquanto nós somos a corrente “do bem”, o caminho para a abertura de outras portas para artistas, crianças, ativistas e personalidades em geral, nós também somos o descuido, a crítica infundada e emocional, o “lado certo da história”, a próxima crise de depressão ou ansiedade de alguém que talvez nunca tenha dito ou pensado aquilo. Como podemos exercer a empatia sem deixar a manipulação se sobrepor? Como podemos digerir e distinguir a informação, o fato, da mentira? Não é algo fácil de se fazer, mas é um exercício necessário, para que não precisemos depois apedrejar a mão que nos afaga e escarrar na boca que nos beija.
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