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A VIRIL INTUIÇÃO DE DOUTOR AUGUSTO



(Música para leitura:

"In My Life" - Beatles

ou "Minha Vida" - Rita Lee)


A gente passa por momentos na vida que nos marcam, e isso é fato. Se esses momentos não existissem, o ser humano como um todo seria reduzido a uma partícula de poeira: sem empatia, sem adrenalina, sem emoção e sem aventura, só poeira. Além disso, outro aspecto importantíssimo da vida é que ela sempre muda, está sempre em transformação e sempre se adapta para além do que podemos ver ou perceber e, então, subitamente, as crianças já cresceram, as suas plantas já morreram, você já terminou a faculdade ou a escola, você já está dando seus primeiros passos dentro de uma casa de repouso. Subitamente.


Se nós não pararmos para admirar, a vida passa diante dos nossos olhos e nem percebemos. Mudamos tão rapidamente que mal podemos parar para saborear direito e completamente os bons momentos, apenas podemos observá-los de longe, como meros espectadores. As coisas nunca foram estátuas e nunca serão, até porque, nem deveriam. Imagine uma vida imóvel, aquela em que sempre acontece tudo, para sempre. Você nunca sai da escola; aquela entrevista? Você nunca passa da primeira fase; o seu projeto nunca vai adiante; ninguém que você encontrou te inspirou; você nunca inspirou alguém.


Humanos não servem para mudança, somos seres sedentários que estão mais a fim de conveniência do que de esforço (e, se me vierem os ratos de academia querendo me provar o contrário, eu já digo, coloca um chocolate e uma televisãozinha na frente deles e pergunta se eles ainda preferem o supino). Mas independe da nossa vontade como fluem os rios da vida, assim como as pedras que eles terão e o tamanho das cachoeiras.


A verdade mais profunda, e que não é tão somente justo considerarmos, mas também concordarmos, é que temos medo. Medo de tudo. Medo da mudança e, mais em especial, daquilo que ela poderá trazer. Nada no universo gosta de mudar, e, ainda assim, ele muda, e acho fútil ficarmos nos perguntando o porquê disso tudo ou como podemos fazer para evitar que tudo mude, porque já começou o que quer que seja que procuramos tão desesperadamente. A maré já está se retraindo, a onda já está se formando, e é inútil tentar impedir que ela se quebre na costa.


Mas então, o que fazemos quanto a tudo isso? Nada. Seguimos. E vamos sofrer, sempre e inevitavelmente. Um futuro sombrio, se você me perguntar. Entretanto, podemos olhar para isso por outro ângulo. Se tudo tem de mudar, então temos momentos em que as coisas apenas... são, afinal, se não fosse assim, a mudança como conceito não existiria. Então, podemos aproveitar o momento por entre mudanças para viver, como curtos retornos à superfície para garantir aquele respiro salvador, antes de retornar às profundezas.


Agora sim, estamos prontos para começar. O palco está pronto, os atores a postos, a iluminação toda ajeitada. A peça está prestes a começar. Estamos todos atrás das cortinas, na iminência de abrirem. Sabemos somente que, depois de abrirem, em alguma hora, elas tornam a se fechar. Não lemos o roteiro e o diretor é um sujeitinho indeciso que tende a trocar o rumo da história durante a sua exibição. Os atores nem sempre são seus amigos e todo o cenário é feito de papelão. E quem está assistindo? Quem é a plateia? Uma vez que as cortinas se abrem, o contraste da iluminação deixa o resto do teatro em puro breu. Quem você vê?


A vida pode ser definida como algo que acontece em algum ponto entre o nascimento e a morte de uma pessoa. Dizer mais do que isso seria impreciso e, francamente, cruel. A beleza e o mistério são boas companheiras. Aceite a mudança e a sua viagem por esse rio será tão turbulenta quanto se você não a aceitar, eu lhe garanto. Ela é intrínseca à nossa condição, mas há um segredo.


Mudar pode ser mais suportável se, apesar disso, mantivermos sempre em mente todas as outras pessoas que nós já fomos. Não para criar uma amálgama de personalidades distintas, mas para nos lembrar. Não temos o roteiro da peça, mas a memória é uma ótima ferramenta para garantir continuidade.


Temamos a mudança, mas não fujamos dela. Eu pelo menos sei que minha curiosidade vence o meu medo de descobrir o que será. Espero que o roteiro não seja tão cruel, que os outros atores não sintam inveja do holofote, que o meu diretor seja o mais decidido de todos eles. Espero que na plateia eu a veja, porque só assim eu conseguiria atuar tranquilo. A cortina se abre, eu olho em desespero para o infinito. Dou um passo para frente e começo a prosar: “Ser ou não ser. Eis a–”. Paro subitamente, o suor desce pela minha face. A peça era Morte e Vida Severina.


(P.S.: eu sempre gostei de escutar música enquanto lia. Às vezes só uma simples melodia, às vezes uma música com letra e tudo. Sempre achei que as artes se complementam e nos ajudam a melhor absorver a mensagem do texto e da música. Pensando assim, talvez a versão “Minha Vida”, da Rita, cumpra melhor esse papel, mas, para falar a verdade, escute as duas. São lindas.)


Autoria: Enrico Romariz Recco

Revisão: Gabriela Veit e Anna Cecília Serrano

Imagem da capa: The Beatles Bible (https://www.beatlesbible.com/songs/in-my-life/)



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