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ARTE E ANGÚSTIA: UMA JANELA PARA O REAL



“Que estranha cena descreves,

e que estranhos prisioneiros.

São iguais a nós”

Platão; “República”, Livro VII


Já sentiu angústia? Quem nunca sentiu angústia? Aquela dor cruel no fundo do peito, que não sinaliza sua origem, nem ajuda a se perdoar. Uma dor que persiste. Persiste também a tentativa de a curar: resolução da gênese dolorosa. Por vezes encontramos o fio da meada, mas também muitos são os casos em que optamos por abandonar tais pensamentos quando projetamos que a insuportável dor de os afrontar aparenta ser demasiadamente grande. O começo de uma angústia varia muito de pessoa para pessoa, é um processo eternamente subjetivo. Mas o que torna nossa angústia semelhante à de todos é a vontade de expressar – o desejo, a pulsão –, que não encontra seu lugar de sossego.


Contudo, bem melhor seria se não vivêssemos todos dentro de um grande teatro – um theatrum mundi -, isto é, em uma realidade em que todos parecem viver múltiplos papéis, ocultando o verdadeiro ser. O primeiro a abordar tal teatralidade da vida foi William Shakespeare (1564-1616), em sua mais consagrada peça, Hamlet[1], cujo nome do protagonista lhe dá título. Assim como em toda peça do dramaturgo, os acontecimentos da trama têm menor importância do que as tensões mentais, logo, não creio ser necessário nos atermos ao enredo. Em Hamlet, nos é apresentada uma realidade repleta de significados que podem ou não coincidir uns com os outros. Além disso, não é só o que cerca Hamlet que não coincide, mas também, após extensas reflexões, seus próprios sentimentos e motivações. O real se apresenta como uma grande incongruência.


A personagem principal encontra dificuldade em agir - em tomar partido e adotar uma certeza -, pois nada mais categórico do que a realização de uma ação. E é nessa impossibilidade de agir – nessa confusão, desse “ser ou não ser” – que Hamlet encontra sua angústia. Se é a ação que determina o ser e não se é capaz de agir, então a personagem está, em alguma medida, desalinhada com sua essência, fragmentada. Ora, se muito se é, é por meio dessas contradições que se toma partido de diversos papéis, incorporando-se a encenação do modo mais radical possível. Mais que isso, são esses múltiplos discursos que possibilitam uma contracenação com os outros, pois é necessário negar a unicidade do ser para que o convívio social se estabeleça harmonicamente.


Consequentemente, uma vez que a fragmentação marca toda a contemporaneidade, é essa consciência irônica de viver a vida como teatro que está incorporada tanto em Hamlet quanto em nós mesmos - nossas experiências não passam de uma grande imitação teatral: tudo se é, menos a si mesmo. Somos aqui e ali - um pouco de cada vez. O problema é que normalmente embarcamos em uma completa alienação de nossos sentimentos e sonhos mais íntimos. Tudo vira espetáculo: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Aqui temos a angústia.


Do ponto de vista da saúde psíquica, tal dificuldade para lidar com essa fragmentação da realidade, bem como a gênese da angústia a partir desse processo, foi abordada pela psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939) por meio da elaboração de seu processo terapêutico. Nele, Freud postula que a cura – a atenuação da angústia - se dá mediante a descarga do excesso incongruente, pois este é tamanho que o perdemos da consciência, armazenando-o em nosso inconsciente. Assim, o ato psicoterapêutico é nada mais do que uma tentativa de extrair esses pensamentos, permitindo que o sujeito, uma vez levando-os para a consciência, lhes dê um destino mais razoável que o reles esquecimento.[2]


Trata-se da associação-livre, isto é, da permissão que a pessoa manifeste por meio da fala tudo o que vem à mente após a introdução de uma demanda por parte do sujeito, sem deixar que as barreiras da cultura impeçam a revelação de seus impulsos. Algo similar ao trabalho de um grande escultor, que, a partir da remoção de partes da pedra bruta, forja as maiores maravilhas. Nesse cenário, o pai da psicanálise chama atenção para o fato de que não só seu procedimento terapêutico através da fala é capaz de curar, mas todo tipo de linguagem e produção cultural acaba inevitavelmente ajudando na realização dessa descarga de material oculto, uma vez que toda linguagem é uma tentativa de dizer algo. Com isso, abre-se margem para que o trabalho artístico desempenhe uma importante função nesse processo, colocando as possibilidades de tratamento para além da terapia analítica.


Em meados da década de 1920, um grupo de artistas focou seus esforços na elaboração de um método que seria capaz de transcender o real – tão confuso e falso - ao encontrar a linha tênue que liga o imaginário e a realidade, o que possibilitaria outras vias para a descarga de material inconsciente. Eles ficaram conhecidos como Surrealistas. Advogavam contra o “império da lógica”, que, segundo eles, possuía uma “mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável”. Ademais, tal obsessão só serviria para resolver problemas secundários do homem e acabava por relegar o imaginário, a criatividade e o onírico ao estatuto de irrealidade. “Vivemos de fato a nossa fantasia, quando estamos lá”, afirmou André Breton (1896-1966), autor do Manifesto Surrealista (1924)[3].


Devido a essa posição, os surrealistas buscavam romper a realidade e as estruturas tal qual elas nos são apresentadas. Ao observar os quadros de Salvador Dalí (1904-1989), um dos expoentes desse movimento, percebe-se que a extrapolação da retratação figurativa das imagens marca sua obra como um todo (imagem de capa do post). Tais extrapolações superam as formações que estamos habituados a conhecer em nosso “estado de vigília” – quando estamos despertos -, dando-lhes um caráter onírico. Uma vez superado este estágio, Breton entendia que conseguiríamos criar novos conhecimentos e dar luz a novos significados para o mundo que nos cerca. Teríamos, no meu entender, lugar para a demanda de compreensão e experiência para com a realidade complexa que também era latente em Hamlet e que, de certo modo, nos é. Existem barreiras as quais apenas a língua não é capaz de superar, são necessários novos caminhos, sendo a pintura um deles.[4]


Para não limitar apenas ao caso da pintura, trago aqui a ideia da música enquanto linguagem e, portanto, passível de nos amparar nessas resoluções subjetivas. Podemos dizer a mesma coisa de infindáveis maneiras, mas a música possibilita uma extensão desse processo, dessa realidade. Trago aqui, então, uma música em que essas múltiplas texturas e diferenças podem ser facilmente percebidas. Trata-se das 32 variações em Dó menor, de Ludwig van Beethoven (1770-1827)[5], compostas em 1806. Nas referências ao final do texto, coloquei uma interpretação disponível no YouTube do pianista russo Evgeny Kissin (1971-) na qual o número de cada variação aparece na tela, facilitando a visualização da transição de cada canção, uma vez que normalmente os intérpretes as tocam seguidas umas das outras. Essa música, ou melhor, esse conjunto de 32 canções, aborda 32 perspectivas diferentes sobre um mesmo tema principal, isto é, formas variadas de dizer a “mesma coisa”.


Certo que, quando estamos zangados, felizes, impacientes e assim por diante, podemos expressar um simples “sim” com entonações diferentes. No entanto, estamos limitados por nossas capacidades vocais. O que trago aqui, por outro lado, é que, a partir do instrumento, temos nossa linguagem ampliada em extensão mais do que a habilidade de falar outros idiomas. No instrumento e através dele, não é imprescindível predisposição vocal para atingir o mais alto agudo ou o mais pesado grave. O instrumento – o piano, neste caso – possibilita a ampliação desses tons e, além disso, permite que os mesclemos ao mesmo tempo por nós mesmos. No caso das variações, isso é percebido, por exemplo, logo nas três primeiras variações. Enquanto na primeira e na segunda temos, respectivamente, o agudo e o grave assumindo a melodia principal, na terceira temos tanto o grave quanto o agudo desempenhando-o.


Por fim, o que trago aqui é que se Van Gogh (1853-1890), ao sofrer profundamente em seus anos finais, sentia uma gigantesca necessidade de pintar a todo momento, era porque tinha algo a dizer que talvez não conseguisse elaborar em holandês, seu idioma. Que se Hamlet se utilizava da teatralidade da vida, assumindo múltiplos papéis, era porque talvez um único não permitisse a ascensão de suas vozes interiores. Que se Dalí buscava figuras quiméricas como forma de representação, era porque a realidade comum excluía a realidade que se apresentava em sua mente, não menos real, uma vez sentida e vivida. Que se Beethoven procurou exaustivamente 32 formas para dizer uma simples “frase”, era porque sua língua nativa, o alemão, já tão complexo e com a mania de ter nome para tudo, não fora suficiente para alcançar o seu real. E que, portanto, vemos como o método psicanalítico para tratamento da angústia nada mais é do que um braço desse mecanismo de expressão.


Hamlet: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar a tua filosofia.”


Gabriel Linares, 2021



Revisão: Guilherme Caruso e Glendha Visani

Imagem de capa: “A Tentação de Saint Anthony”, Salvador Dalí, 1946

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Referências

  1. SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

  2. FREUD, Sigmund. Psicoterapia (1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

  3. BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924.

  4. DUNKER, Christian. Psicanálise e Surrealismo. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aPxtKJcc_Jk&ab_channel=ChristianDunker. Acesso em: 11 mai. 2021.

  5. BEETHOVEN, L. V. 32 Variations in C Minor: Evgeny Kissin [2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FIZWPbCZ6cQ. Acesso em: 13 mai. 2021.

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