Até quando trataremos as mulheres como inferiores? Até que ano fecharemos os olhos para faculdades que votam a favor da desigualdade de gênero? Até que ano aceitaremos que o esporte feminino seja menosprezado?
A desigualdade de gênero no esporte infelizmente é uma realidade que ainda assombra as esportistas brasileiras. A diferença salarial e a falta de visibilidade e respeito dentro do esporte feminino ainda são gritantes no mundo inteiro. Óbvio que já houve muitas conquistas, mas o trajeto a ser percorrido ainda é muito longo, e esperávamos que faculdades de renome lutassem para esse avanço.
Vale iniciar essa história na década de 40, quando o futebol feminino foi proibido no Brasil, durante a ditadura do Estado Novo. Segundo Getúlio Vargas, o esporte não condizia com a natureza frágil das damas, e por isso foram impedidas de praticá-lo por meio de um decreto-lei assinado pelo presidente. Segundo a ex-nadadora Maria Lenk, o veto às futebolistas se refletia negativamente em todos os esportes, inclusive naqueles nos quais mulheres eram autorizadas a praticar. Tal fato se torna nítido ao analisar que dentre todos os atletas registrados nas federações, só 6% eram mulheres.
Somente em 1983 que o futebol voltou a ser praticado legalmente pelas mulheres, o que as obrigou a se esforçar muito mais do que os homens para ganhar algum espaço na mídia e no consciente coletivo brasileiro. Também vemos a desigualdade salarial entre atletas homens e mulheres, que é resultado (principalmente) dessa falta de visibilidade feminina, principalmente no futebol, esporte mais famoso no país. A jogadora Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo pela Fifa, ganhava dez vezes menos que o Neymar, que nunca foi eleito melhor jogador do mundo.
Indubitavelmente essa desigualdade de tratamento se repete no mundo universitário, afinal, somos um mero reflexo da realidade em que vivemos. Resta compreender que não estamos fadados a cometer os mesmos erros, e temos a possibilidade de melhorar o cenário que presenciamos. A faculdade deve ser um espaço para crescermos, para sermos futuros (ou atuais) moldadores do pensamento coletivo, da moral e da ética da sociedade.
O esporte universitário, deveria ser um espaço de acolhimento para os alunos, um momento de lazer e de escapismo da realidade acadêmica maçante e além de oferecer uma oportunidade para comprometimento e um sentimento de pertencimento. A prática esportiva é cientificamente muito benéfica à saúde física e mental do ser humano, e percebe-se uma falta de apoio institucional proporcional a sua importância. Mais do que isso, diz que as mulheres têm menos direito que os homens de representar suas faculdades e de mostrar sua força e talento.
O campeonato esportivo universitário Economíadas atraiu mais de 25 mil pessoas para São Carlos em 2023 e é citado em grandes redes de comunicação, como o G1. Fica clara sua alta repercussão principalmente no público universitário, dessa maneira, entende-se que decisões tomadas nesse evento causam impacto na ideia de “esporte universitário”. O Economíadas deveria, então, ser um exemplo da igualdade de gênero da melhor maneira, mas isso não parece ser a realidade.
Cinco anos atrás, dia 20 de junho de 2019 as atletas mulheres da natação FGV postaram em seu Instagram uma foto segurando um banner com a seguinte frase: “Cadê os 100 medley feminino?”. Até aquele ano, a prova existia somente na categoria masculina, e as atletas criaram um movimento para alertar sobre o sexismo que ali perdurava.
“Todas as provas da natação são de 50m. A única prova de 100m é, justamente, a dos 100m medley, que, por algum motivo, mulheres não podem se inscrever. Nós, da equipe feminina de natação, nos sentimos menosprezadas por esse fato. Qual a justificativa para isso? Mulheres não conseguem nadar mais do que 50m? E o que mais nos incomoda é: Economíadas, 2019, ainda existe essa diferença de gênero?
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Imaginem, por exemplo, se na modalidade do basquete feminino cestas de três pontos contassem somente como dois, enquanto no basquete masculino, as regras fossem as oficiais. Vocês não achariam, no mínimo, estranho? Se, no futsal feminino, não houvesse lateral. Se, no vôlei, as mulheres só pudessem jogar 6x0 e não 4x2 ou 5x1. Se, no handebol feminino, não houvesse sete metros. Se, no xadrez, as mulheres pudessem jogar sem relógio. Isso tudo com as regras oficiais mantidas para os times masculinos. Não causa revolta? Não parece absurdo?”
Em 2020, a prova foi criada e todo o esforço delas parecia ter valido a pena. Segundo o regulamento, no entanto, seriam necessários dois anos de demonstrativo para que todas as atléticas tivessem tempo para estruturar um time da modalidade, no caso dos 100 medley essa justificativa seria infundada, visto que o time feminino já existia. A desculpa era que, nesse caso, era necessário um tempo para fortalecer seu time feminino e conseguir atletas para nadar essa prova. Infelizmente, por conta da pandemia, o Economíadas não ocorreu naquele ano, e nem no ano seguinte.
Em 2022 os jogos voltaram e a prova foi realizada como demonstrativo, igualmente no ano seguinte, e a previsão era que em 2024 a modalidade passasse a valer pontos. No dia 23 de março desse ano ocorreu a votação para fechar o regulamento da natação do Econo, e somente a FGV, a FECAP e a ESPM votaram a favor da oficialização da prova dos 100 metros medley feminino. Segundo o regulamento:
“Art. 33
§ 2º - Após os 2 (dois) anos de disputa como modalidade demonstrativa poderá abrir-se votação em reunião ordinária de C.O. (Comissão Organizadora)
I - Para que a modalidade se torne oficial, ou seja, passe a valer pontos na contagem geral da competição, quórum para aprovação deverá ser de maioria qualificada das Atléticas Organizadoras aptas a votar.
II - Caso a modalidade não seja aprovada como oficial, permanecerá como demonstrativa, não sendo passível nova votação na mesma edição.”
O quórum não foi cumprido, pois somente 3 das 7 atléticas votaram a favor. Desse modo, depois de amanhã (dia 25/05), a prova ocorrerá novamente sem contar pontos, e depois de cinco anos, quase nada parece ter mudado. Apesar da vontade da maioria das atletas de nadar nessa prova em pé de igualdade, algumas atléticas decidiram votar contra elas. Felizmente a atlética da GV estava alinhada com a equipe que representa e apoiou suas atletas mulheres, lutando para que a desigualdade de gênero não perdurasse. Treinamos os mesmos treinos, nas mesmas raias, nos mesmos dias; nos esforçamos da mesma maneira, lutamos até mais para ganhar nosso espaço; mesmo assim somos tratadas como inferiores.
A equipe feminina de natação da FGV é até maior que a equipe masculina, então não entendemos por que as outras atléticas alegam que o time feminino é insuficiente para pontuar nessa prova. Segundo levantamento do IBGE, em 2022, dos 5,1 milhões de alunos matriculados em universidades, 2,9 milhões eram mulheres, o que equivale a 57,5%, ou seja, as mulheres eram maioria entre as pessoas que cursam ensino superior no país. Fica claro que a lacuna não está no número de estudantes, e sim na falta de incentivo das atléticas e das faculdades ao esporte feminino.
Concomitantemente ao escândalo do 100 medley feminino, ocorreram as votações para a oficialização do revezamento misto, em que nadam homens e mulheres na mesma prova, pontuando para ambas as categorias. Prova oficial fora do mundo universitário. Aqui identifica-se mais ainda o entendimento dos times de que suas atletas mulheres são mais fracas do que os homens, visto que o desempenho feminino alteraria o resultado do masculino. Curiosamente o quórum da votação foi menor ainda, tendo somente a FGV e a FECAP a favor da prova. Vale compreender que essa votação não deveria ser uma pauta de vantagem e desvantagem para uma ou outra faculdade, e sim uma pauta de igualdade, representatividade e inclusão. A decisão deveria ser fundada na possibilidade das atletas serem tratadas de maneira igual, não na pontuação geral, mas parece que não são todos que concordam com isso.
O Rugby feminino sofre com a mesma descriminação que a natação feminina. A categoria masculina existe desde 2013, e desde então as mulheres lutam para terem o mesmo direito. Os anos de demonstrativo já passaram, mas ano após ano as faculdades continuam a votar para que a prova não se oficialize. Em 2024 ocorreu a votação e somente a FGV e a FECAP votaram a favor de suas atletas, de modo que não foi possível mudar essa situação de desigualdade. Em publicação do time de rugby da FGV em conjunto com o da FECAP escreveram: “Não somos apenas um intervalo para os jogos do masculino, somos nosso próprio jogo”.
Como mulheres, conquistamos diversos direitos ao longo dos anos: o direito ao voto, o direito à educação, o direito a trabalhar (mesmo que desigualmente), entre outros. Aparentemente ainda estamos longe de conquistar o respeito nos esportes. Durante o Estado Novo, diziam que o corpo das mulheres era delicado demais para o esporte, e que os xingamentos em campo levariam à degeneração moral do “sexo frágil”. Décadas se passaram e parece que a opinião de algumas atléticas que participam do Econo têm a mesma visão.
Não entendo o porquê suas atletas não são incentivadas a jogar rugby, não entendo o porquê suas atletas não são incentivadas a nadar. As atléticas não deveriam votar para que as modalidades não valessem pontos, e sim deviam lutar para incentivar a participação de mais mulheres - ou aceitem que não conseguem atrair atenção das alunas da sua faculdade para os esportes, pois tenha certeza, elas são capazes e só falta um suporte e um estímulo para instigar seu interesse. A vida inteira foram instruídas a não parecerem agressivas, foram ensinadas que esporte é “coisa de homem”, então elas precisam sim de um incentivo maior para entender que elas também têm seu espaço no esporte.
Felizmente estamos em uma faculdade que valoriza suas atletas mulheres. No entanto, essa moral não é compartilhada. Encontrei o mundo dos esportes em um espaço de ensino, mas me decepcionei acreditando estar em pé de igualdade com meus colegas de equipe homens. Aparentemente algumas atléticas não acreditam que suas atletas mulheres são tão capazes quanto.
Em que ano estamos para a desigualdade de gênero ser tão descarada no esporte universitário? Até que ano aceitaremos essa realidade? Até que ano o rugby feminino continuará a não pontuar? Até que ano o revezamento misto continuará a não pontuar? Até que ano os 100 metros medley feminino continuará a não pontuar?
Autoria: Elis Suzuki
Revisão: Ana Carolina Clauss e Artur Santilli
Imagem de capa: Montagem por Elis Montenegro Suzuki
Referências Bibliográficas:
VIDICA, Letícia. As Donas da Bola: Existe desigualdade de gênero no futebol? CNN BRASIL. 21 jul. 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/as-donas-da-bola-existe-desigualdade-de-genero-no-futebol/>. Acesso em: 19 mai. 2024.
WESTIN, Ricardo. Futebol feminino já foi proibido no Brasil, e CPI pediu legalização. Agência Senado. 04 ago. 2023. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/futebol-feminino-ja-foi-proibido-no-brasil-e-cpi-pediu-legalizacao#:~:text=Por%20mais%20de%2040%20anos,as%20condi%C3%A7%C3%B5es%20de%20sua%20natureza%E2%80%9D.>. Acesso em: 19 mai. 2024.
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Sem autor. Com jogos e shows, 'O Economíadas' deve movimentar R$ 8 milhões em São Carlos. G1 São Carlos e Araraquara. 21 abr. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2022/04/21/com-jogos-e-shows-o-economiadas-deve-movimentar-r-8-milhoes-em-sao-carlos.ghtml>. Acesso em 20 de mai. 2024.
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