Se você foi uma das pessoas que comemorou a eleição de Joe Biden para a presidência dos EUA no último final de semana, este texto é para você. Decerto, seria ingênuo afirmar que a derrota de Donald Trump não sinaliza que o setor democrático no mundo volta a se fortalecer. Contudo, seria esse o grande evento do ano para nós, entusiastas da democracia aqui no Brasil, nos agarrarmos? Seriam os Estados Unidos da América os grandes parâmetros e exemplos do que gostaríamos de alcançar como República? É essa manutenção do colonialismo que queremos exaltar?
Esses questionamentos se fazem importantes em um momento em que buscamos qualquer símbolo do combate a essa nebulosa fascista¹ que ronda os governos pelo mundo. Levanto-os para que, além de saber o que não queremos, - Trump, Bolsonaro, Erdogan - saibamos também o que queremos. Devemos ter em mente uma Utopia² na direção da qual caminhar, e não é o belíssimo sistema da maior democracia liberal do mundo que me entusiasma como a visão de sociedade e identidade que quero para nosso país. Também não acredito que seja um caminho como o de Biden que nos permitirá trilhar nossa reconquista democrática. Isto é, sem qualquer mudança substancial no padrão de presidente e sociedade, hetero, branco, cis e rico, com perspectivas de direita e centro direita, sem reformas estruturais ou que diminuam desigualdades, sem contemplar minorias ou pautas progressistas plenas como políticas de desencarceramento.
Me encoraja mais olhar para o lado e ver o Chile, corajosamente, se colocar nas ruas contra a opressão e a herança da ditadura, se manifestando por uma nova constituinte; a Bolívia, que devolve o poder ao povo, elegendo Luis Arce, após grave crise democrática; ou a Colômbia, que vai às ruas pacificamente contra o governo neoliberal de Duque em plena pandemia. A América Latina resiste e pelea. É na luta de países com uma realidade como a nossa que devemos nos inspirar, países esses que compartilham um mesmo legado de colônia e exploração, com nossa identidade, minorias e memórias. Aqui, o neoliberalismo, como colonização, foi empurrado goela abaixo dos latino americanos, mas nunca foi capaz de suprir as necessidades do nosso povo, como combater desigualdades ou dar luz às minorias historicamente marginalizadas.
Mas não é apenas sob essa ótica de ter outra utopia e modelo econômico que questiono os valores da chapa presidencial. As comemorações liberal progressistas, em razão da presença da vice Kamala Harris na chapa, também merecem atenção. Apesar de significar muito no sentido da representatividade, a nova vice já sinalizou, no passado, um grande apreço pelo conservadorismo. Dentre seus posicionamentos questionáveis, aparece a sua simpatia pelo encarceramento em massa, por exemplo. Quando era procuradora geral, por suas mãos, deixou de viabilizar novo julgamento para condenados injustamente, como Kevin Cooper, que está no corredor da morte³.
Em relação à política externa da chapa, não é diferente. Enquanto vice de Obama, Biden também esteve à frente de diversos ataques como mensageiro da democracia e do neoliberalismo. Nesse sentido, o governo no qual era Vice-Presidente não economizou em munições ou em vidas para fazer valer o seu projeto imperialista. Só em 2016, os EUA realizaram mais de 26 mil bombardeios⁴, e não foram poucos os países em que suas intervenções militares aconteceram⁵. Contudo, não há indícios de que, apesar do afastamento de um governo autoritário e anti democrático nos EUA, - o que não deixa de ser uma grande vitória - os democratas no poder farão algo de diferente ao povo estadunidense e aos países que usam como campo de batalha.
A onda fascista que está atravancando o Brasil passará, assim como está passando nos EUA e na América Latina. Prefiro vislumbrar que isso será feito com o povo na rua, com democracia e reformas, e sem mãos estadunidenses para interferir ou nos "guiar". Merecemos e queremos mais do que isso. Que nossas minorias representem efetivamente pautas progressistas e democráticas, que lutemos pelo direito de todos e todas e que nos espelhemos nos nossos irmãos e irmãs em nosso próprio processo de descolonização. “Soy América Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina.” ⁶
REFERÊNCIAS:
¹ Termo cunhado por Umberto Eco para se referir às características fascistas que rondam a sociedade, mesmo após o fim da segunda guerra.
² “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Eduardo Galeano
³ https://www.latimes.com/opinion/story/2020-06-18/kevin-cooper-dna-test-murder-death-row
⁴ https://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/os-eua-com-obama-realizaram-26-171-bombardeios-em-2016/
⁵ https://www.terra.com.br/noticias/mundo/estados-unidos/obama-ordenou-mais-ataques-do-que-bush-diz-cnn,25d09812497a8410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html
⁶ LATINOAMERICA, Calle 13, Entre los que quieran, 2010. https://www.youtube.com/watch?v=DkFJE8ZdeG8
Foto da capa: Bazil Raubach
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