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BREXIT: O DIVÓRCIO 4 ANOS DEPOIS




“O amor é livre, tão livre que ele pode até mesmo permanecer constante”



Esse é um daqueles singelos poemas que encontramos colados nos postes e semáforos nas ruas da capital. E, apesar da frequente cafonice desses lambe-lambes aspirantes a poesia, não posso negar que esse em específico é uma descrição simples, inteligente, e suficientemente poética para o meu gosto. Afinal, relacionamentos são uma das faces mais complexas da vida humana. Você com certeza já passou pela montanha russa de sentimentos incertos que são as paixões, namoros e casamentos, e talvez até seus eventuais desfechos melancólicos.



Agora, imagino que uma única relação monogâmica entre 66 milhões de pessoas com outras 449 milhões seja particularmente complexa. Vamos falar então do divórcio mais caro da história.



Em 2016, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte oficialmente deixou a União Europeia, após um referendo realizado em 2016 no qual 51% da população votou pelo fim da participação do país no bloco. Quatro anos de negociações turbulentas resultaram no Brexit (aglutinação para British Exit, “saída britânica”), um choque econômico que implodiu a economia do Reino Unido na forma de sua pior recessão desde a Grande Depressão e chacoalhou com força  muitos países no continente, como a Irlanda e a Alemanha, além de indicar que a União Europeia, na visão de seus detratores, está saltitando de crise política após crise política e respirando por aparelhos, perdendo a confiança de seus membros em uma velocidade alucinante.



A história do Brexit é desnecessariamente complicada, então vamos voltar à analogia do relacionamento: O Reino Unido era aquele típico jovem rebelde, enérgico, independente e autocentrado. Curtir a própria vida era sua prioridade, ora, só se tem uma! Então lá vai a Britânia, ostentosamente desfilando seu império colonial e a armada mais potente do planeta durante cem anos. A Europa continental é uma pessoa mais complicada, introspectiva, com problemas maiores que um império ultramarino, como “como evitar que Napoleão mate todo mundo”, ou “como evitar que todo mundo nos Bálcãs se matem”, ou “como evitar que a Áustria, a Prússia e a França se matem (de novo)”, tudo isso sem saber o que ela era, como chegou até ali e não ter certeza da onde ir. Um casal improvável, mas unidos por um problema comum - a Primeira Guerra Mundial.



No final de 1918, a ameaça representada pelo Império Alemão aos Ingleses não existia mais, e o Reino Unido percebeu que não podia mais ignorar os problemas no continente pois a França não poderia conter todas as tensões na região sozinha. Seu ex, o Império Russo, passou por uma mudança bem radical e vermelha de personalidade que acabou com o relacionamento, deixando para Paris o abacaxi de cuidar de uma dúzia de países no leste europeu sozinha. A Alemanha agora era uma república que estava borbulhando entre revoluções e milícias, enquanto ninguém sabia exatamente o que fazer com as colônias das potências derrotadas. Por uma questão de necessidade, rivais tornaram-se amantes e capitanearam a Liga das Nações, um namoro disfuncional e que não cumpriu com sua função, dando brecha para uma Segunda Guerra Mundial.



Mais uma guerra brutal, e somente uma coisa fazia sentido - um vínculo mais forte, um casamento entre Londres e o continente: A União Europeia. Lindo, não? Ficou claro para os estadistas do ocidente que uma Europa mal-integrada política e economicamente era uma receita para um desastre. Noivaram então na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e assinaram os papéis em Bruxelas.



Mas aquela vozinha no fundo da cabeça dos britânicos nunca deixou de falar. A saudade de um país solitário, independente e forte provocava nostalgia na política inglesa e cimentou o euroceticismo como uma faceta crucial da direita do Reino Unido. Churchill e os conservadores eram receosos de comprometer-se à União Europeia, e o país somente aderiu ao bloco apenas em 1973, 22 anos depois de sua criação (cerimônia demorada, concorda?) Já dentro da UE, uma série de atritos entre o bloco e Londres começaram a surgir. Comunhão de bens? Acho que não. Rachar as contas? Nem pensar. Que tal dividir as tarefas da casa? Em resposta ao presidente da França, Jacques Delors, Margaret Thatcher famosamente discursou:



O Presidente da Comissão, Sr. Delors, disse há dias numa conferência de imprensa que queria que o Parlamento Europeu fosse o órgão democrático da Comunidade, que a Comissão fosse o Executivo e que o Conselho de Ministros fosse o Senado. Não, não, não.”



Uma grosseria dessas não poderia ter outro efeito senão uma briga feia entre os parceiros. Mas Thatcher estava tão errada assim? Sucessivas crises da libra esterlina ocorreram durante os governos trabalhistas pró-UE, e o relaxamento do monitoramento das fronteiras justamente quando o terrorismo na Irlanda do Norte estava em alta era desconcertante para muitos britânicos. Independente do juízo de valor, infelicidade somente leva a vícios e mazelas, e então a Britânia começou a beber, leia-se o completo colapso do gabinete de Thatcher, levando a eleição de John Major, outro conservador que basicamente fez o último seppuku do partido na década de noventa, governando durante a crise especulativa que destroçou a libra em 1992 e sobre a derrota diplomática no Tratado de Maastricht, o mais fundamental documento da União Europeia, sendo sucedido pelo líder do partido trabalhista, Tony Blair, como primeiro-ministro.



As coisas até começaram a apresentar alguma melhora -”Talvez”, pensou a Europa continental - “Talvez Blair seja o europeísta que vá colocar esse bebum diplomático na linha”. O líder do partido trabalhista até proveu uma boa primeira impressão, colocando como objetivo tornar o país uma liderança pela integração europeia, e nisso, dois passos eram necessários: O primeiro era o Euro, o segundo, uma Constituição europeia para todos os membros constituintes, e implementar essas mudanças não seria algo fácil nem de longe.



Primeiro, o Euro. O Tratado de Maastricht tinha o objetivo de determinar algumas diretrizes básicas para os membros da União Europeia, como pilares de políticas públicas, segurança e defesa, meio ambiente e construir as bases para uma moeda única para o bloco. Adotar o Euro, primeiramente, significa abrir mão da autonomia do Banco da Inglaterra, embora os diplomatas britânicos tenham lutado com unhas e dentes para conseguir uma exceção no tratado, e em segundo lugar, implicaria uma mudança significativa no orçamento do governo de sua Majestade. Pelo menos era isso que Gordon Brown, o ministro das finanças, levou em conta ao puxar o gabinete de Blair para longe da nova moeda. Os famosos “cinco testes econômicos” do ministro tinham uma barra tão alta que o Euro nunca poderia ser cogitado durante seu governo. 



Se não se pode convencer Londres a torrar seu dinheiro em jaguares e whiskey em outra moeda, sobrava ainda a constituição, mas essa seria uma tarefa mais hercúlea do que o previsto. Em 2004, foi redigido e assinado o “Tratado Estabelecendo uma Constituição para a Europa”, ou TCE, prevendo referendos em todos os países membros para ratificar o documento, que era vinculante e tinha, em tese, a força legal para substituir por completo as cartas de todos os membros do bloco. Blair, aleatoriamente, decidiu que o referendo seria cancelado em 2004 e ainda não tinha data prevista para acontecer. Quando as votações realmente começaram em 2005, o projeto pan-europeu imediatamente saiu humilhado ao ver uma derrota na França, Holanda, cancelamentos na Polônia, Portugal e Dinamarca, além de sem sequer serem marcados na Chéquia e na Suécia. O vexame político resultante fez com que a UE recuasse por quatro anos na proposta de integração, culminando no Tratado de Lisboa, que enterrou de vez a proposta de uma constituição europeia. 



A popularidade de Blair entrou em decadência, dando espaço para Brown assumir a liderança do partido e o posto de primeiro-ministro. Gordon Brown teve uma carreira consideravelmente mais curta que seu antecessor, mas contou com o azar de receber a crise financeira de 2008 e, nas eleições de 2010, um “parlamento balanceado”, onde nenhum partido obteve uma maioria clara. O fim do seu gabinete foi decretado quando negociações entre os trabalhistas e os diminutos liberal-democratas colapsaram, fazendo com que os Lib-Dems armassem uma coalizão junto aos conservadores de David Cameron. 



O novo governo de sua majestade percebeu que a relação não estava dando certo, levando Cameron a anunciar que seu gabinete pretendia renegociar os termos da participação britânica no bloco, afinal, “ainda temos jeito, né?” O que uma terapia e algumas rodadas de acordos bilaterais não podem alcançar? Ao contrário de uma fração considerável dos conservadores e da crescente extrema-direita inglesa, Cameron acreditava piamente que o Reino Unido estaria melhor na União Europeia do que fora dela. As negociações foram concluídas em 2016, um ano depois das eleições de 2015 na qual os Tories novamente conseguiram uma maioria surpreendente - as custas de prometer uma referendo pela saída do país do bloco.



Encurralado pelos próprios correligionários, Cameron renunciou em junho de 2016, mesmo ano do referendo que oficializou aquela terrível e triste frase: “Eu quero divórcio, Europa”.



Agora era oficial, mas como qualquer separação, o processo seria longo e agoniante, tão longo que eu provavelmente levaria mais dez páginas só para descrevê-lo por completo. Em resumo, o seguinte aconteceu:



Theresa May assumiu o lugar de Cameron, e ela tinha duas opções: Sair com um acordo ou sem um acordo. Com um acordo, o Reino Unido invocaria o artigo 50 de Maastricht para negociar uma saída do bloco, mas os termos da UE poderiam se estender, tecnicamente, pela eternidade por meio do Conselho Europeu, que votaria por parte de Bruxelas na questão. Sem um acordo, o país poderia quase que imediatamente deixar a União Europeia, mas economistas previam que o choque econômico decorrente dessa abordagem seriam severos, o que não impediu o governo de desenhar um plano de contingência em preparação para uma retirada forçada, denominada “Operação Yellowhammer”, o que parece um nome exageradamente refinado para o que é basicamente equivalente a sumir do mapa em uma moto pelo interior da Bolívia ao invés de contratar um advogado.



O plano de May era fazer as coisas do jeito suave, com negociações. Para isso, o primeiro passo foi garantir uma maioria confortável no parlamento convocando eleições antecipadas na esperança de aumentar o número de cadeiras do partido. O plano saiu pela culatra de um jeito tão impressionante, que a premiê foi de líder de um governo de maioria na câmara baixa, para um governo sem maioria, até um governo de minoria pendurado no apoio do partido unionista da Irlanda do Norte.



O primeiro plano desenhado pelo gabinete da primeira ministra, conhecido como Plano Chequers, foi rejeitado pela União Europeia pois praticamente conferia um “status especial” de Londres quanto ao acesso ao mercado europeu. A rejeição do plano e as propostas vagas e receosas nele contido fizeram o secretário responsável pelo Brexit, seu subsecretário, além do ministro das relações exteriores, Boris Johnson,  renunciar em protesto. Se não bastasse o vexame, a rixa com o parlamento escocês e a moral baixíssima do governo na Câmara dos Comuns finalmente levaram May a jogar a toalha em 2018. No seu lugar, Boris Johnson foi convidado para o cargo de primeiro-ministro.



Dizer que Johnson assumiu um problema é um eufemismo: O premiê herdou uma granada sem o pino no seu colo que ia explodir a qualquer momento, pois o prazo final das negociações estava chegando. Para desviar o navio de uma iminente colisão em um Brexit sem acordo, Johnson primeiro fez um expurgo do partido conservador nunca antes visto. Depois, convocou novas eleições e fez uma maioria sólida no parlamento, conseguindo negociar uma extensão do prazo até a aprovação do acordo de saída pelos legisladores britânicos. 



Em 17 de outubro de 2019, Boris Johnson e Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, anunciaram que as partes haviam chegado a um acordo, bastando apenas a ratificação no parlamento em Westminster, o que ocorreu dia 30 do mesmo mês. No ano seguinte, a história de amor e frustrações se encerrou…



… Mesmo?



O fechar das cortinas na saga do Brexit somente fez o tema deixar de ser o assunto quente do continente, mas as complicações do divórcio foram muitas.



No Reino Unido, o gabinete de Johnson caiu depois de uma série de escândalos políticos, e sua sucessora, Liz Truss, durou meros 50 dias no cargo, sendo sucedida por Rishi Sunak, o impopular líder dos conservadores que foi de mal a pior enquanto premiê. Nas eleições gerais deste ano, os trabalhistas varreram o chão com os tories, conseguindo uma maioria histórica e trazendo ao poder Keir Starmer.



Do outro lado do Canal da Mancha, a Europa passou por alguns maus bocados. Desde a implosão da zona do euro em 2008, baques econômicos um atrás do outro fragilizaram o mercado europeu. A Pandemia de COVID-19 e a Invasão da Ucrânia são alguns dos exemplos dos maiores e mais recentes tumultos. Politicamente, outros países estão começando a questionar a eficácia da União. Partidos populistas e eurocéticos, alguns flertando muito (mas muito) próximo com a extrema-direita, como o Vox (Espanha), AfD (Alemanha) e RN (França) têm ganhado força nos países mais relevantes do bloco. E de dentro do bloco, a situação está ainda mais complicada, porque de todas as pessoas possíveis para ganhar influência, foi logo Viktor Orbán, o “democrata iliberal” da Hungria, que chegou na presidência do conselho europeu e está atualmente instigando uma guerrilha diplomática contra o resto do bloco.



Enquanto a França, Alemanha e Itália fazem um malabarismo político para segurar a onda populista dos dois lados do espectro político, a imigração se torna um tema cada vez mais polarizado e complexo. O noticiário internacional já cobriu intensamente a renascença do nacionalismo na Europa e as convulsões causada pela chegada de mais imigrantes no continente, mas algo menos comentado é o fato de que a Rússia e Belarus estão transformando refugiados em armas, inundando as fronteiras do leste europeu com ondas e mais ondas de imigrantes em busca de asilo. Em um tempo onde o apoio à Ucrânia parece titubear, o quebra-cabeça principal é como manter o bloco seguro e estável quando todos os frontes parecem estar em crise.



Starmer, enquanto isso, não está em uma posição muito melhor. Apesar de sua grande conquista eleitoral, sua popularidade já parece estar em queda e a economia inglesa está na melhor das hipóteses devagar, e na pior completamente catatônica, enquanto o “pai do Brexit” Nigel Farage e seu partido, Reform UK, estão ganhando popularidade e tomando o vácuo deixado pelos conservadores. Desde sua eleição, o líder do partido trabalhista prometeu uma revisão da posição do país em frente a União Europeia. A ideia pode fazer sentido. Uma pitada de europeísmo e políticas mais amenas podem ser o elemento faltante para o partido se entrincheirar em todos os países no Reino Unido, mas também coloca em evidência o risco real do país se atolar em crises continentais que ele poderia evitar de fora do bloco.



Velhos hábitos não morrem fácil, e a relação entre Reino Unido e o continente definitivamente não vai se resolver tão cedo. Apesar da ideia de desfazer o Brexit parecer radical e, para um país nada estável, traumático, seria a solução mais prática e óbvia em um mundo onde todo o continente europeu, incluindo as ilhas britânicas, está cada vez mais sozinho. Especialmente se os Estados Unidos optarem pelo isolacionismo de Donald Trump nessas eleições, é bom que que Londres e Bruxelas achem motivos para se amar de novo - e rápido, pois o mesmo problema que juntou-os no princípio está batendo na porta pelo leste de novo.



Autor: Guilherme Neto



Revisão: Artur Santilli e André Rhinow



Imagem de capa: EL PAÍS Brasil/Revista IstoÉ, montagem do autor



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