O texto de hoje é de nosso redator Felipe Takehara: uma breve crônica sobre o que buscamos, o que queremos e a maneira como a vida pode ser vista por um espectro de diferentes cores e formas. Uma brilhante abordagem sobre nossa vivência e nossos sonhos e sobre os questionamentos constantes que a vida nos proporciona.
...By chance two separate glances meet And I am you and what I see is me And do I take you by the hand And lead you through the land And help me understand the best I can?
Echoes, Pink Floyd
Entrou no salão com seus bonitos cabelos castanhos. Com passos calmos, os olhos procuravam por uma mesa que estivesse vazia. Encontrou-a. As sandálias enrugadas, a blusa azul desfiada, o tímido rubor na face das bochechas, na ponta do nariz, o livro debaixo do braço. Ficaria neste café por mais de algum tempo, certamente.
— Por favor um café, disse ao garçom.
Aquele lugar lhe era particularmente agradável: pequeno, discreto, as mesas individuais, as trilhas sonoras eruditas, os funcionários tímidos, e Kandinsky enlouquecendo as paredes. Encontrava-se no terraço de um antigo edifício, suas janelas globais lhe permitiam contemplar os todos detalhes: ali, sentia-se metafisicamente distante.
Acendeu um cigarro enquanto observava o movimento da cidade. Sobejavam as fileiras de pessoas a caminhar sobre o chão cinza, povoado por canteiros mal cuidados e respiradouros semiabertos. Deve-se tomar cuidado para não cair dentro de um, pensou.
— Olhe para elas ali.
Bateu as cinzas do cigarro, e aspirou a névoa branca, suspirando. Com uma das mãos apoiando o rosto, a outra apontava para a janela.
— A gente caminha para onde? Quer dizer, hoje a gente não caminha mais né. A gente corre pelo quê, Lilian?
— Acho que a gente sempre está correndo atrás de algo, tentando chegar a algum lugar, tentando encontrar alguma coisa. A gente corre pelos nossos objetivos, pelos nossos sonhos. A gente corre para viver. Ou vive para correr…
— E quando a gente continua a correr mesmo quando não temos certeza se haverá esse algo, tampouco o lugar?
— Não sei. Andou lendo aqueles textos perigosos? Você normalmente faz essas perguntas quando lê os textos perigosos.
— Sim… É que me assombrou outro dia um livro em que o autor trabalhava essa ideia. Um pouco dessa ideia. Seria um absurdo correr indefinidamente atrás de algo que não há ou dificilmente haverá? Ele não usava meus termos banais: era sinceramente dramático, mas sobretudo real. Dizia ele: a vida nossa não é vivida gratuitamente, há em tudo que se faz, em que tudo se decide, alguma razão que fundamenta a seriedade com que vivemo-la, e nela profundamente acreditamos. Mas também sempre há disponível em nós um ponto de vista capaz de nos deslocar da nossa forma particular de vida, onde podemos transcender a nós mesmos, e nos encontramos com a possibilidade de investigar isto que foi vivido – e no que se acreditou. É o sujeito virando objeto investigado pelo sujeito: é quando o filme da vida rola diante dos olhos – ali é possível questionar aquela razão, colocá-la em dúvida. Cai o confortável manto de solidez e a estátua da vida revela seu núcleo de pluma – assim é que nasce a terrível incerteza. Quem nunca sentiu isso? Surge daí o absurdo da vida, ele agoniza: é um absurdo, porque mesmo constatando que as razões que sustentam o nosso modo de vida são incertas e duvidosas, ainda assim continuamos a viver em seu nome com a mesma seriedade – honestamente engajados. Quem disse que a liberdade é a pedra de toque da vida? A igualdade, a razão, a justiça, a paz? Onde está escrito no universo que é alguma dessas coisas o que deve nos guiar? “Que nihilismo infantil”, os outros respondem, – animais! Veja, um rato não sabe que sua vida é um absurdo, pois não é capaz de transcender-se: ele só pode saber que é rato e que vive como um rato – não tem acesso à imaginação de que, sendo rato, talvez poderia ser outra coisa, um tigre ou uma águia; a ele não é possível conjecturar sobre como é ser uma dessas feras – e agonizar por ser só um rato. Nós podemos…
— Corrompi o que ele disse, mas é um pouco disso – tragou o cigarro enquanto olhava para os que caminhavam embaixo – diga-me Lilian, qual o sentido de perseguirmos algo quando ele é intangível ou provavelmente intangível? Ninguém é tão estúpido a ponto de apostar a vida inteira numa mera possibilidade.
— Já vamos começar com um exagero desses? O café nem chegou ainda – disse Lilian, rindo sarcasticamente. — Talvez a vida seja um jogo de azar, talvez nossos sonhos sejam as apostas – talvez seria melhor se fossemos ratos…
— Pois é. Como aqueles ali vivem as suas vidinhas? Será que já pensaram nisso? Será que vivem porque nunca pensam nisso? Talvez tudo tenha a possibilidade de ser arbitrário, subjetivo, questionado, duvidoso…
— Isto é – interrompeu Lilian – se aquele autor tivesse razão. Ele parece não acreditar em verdade. Pois eu penso que se houvesse a Verdade de fato, capaz de anunciar a correta resposta de qualquer questionamento, qualquer dúvida, não haveria absurdo – ela seria irresistível. Fisicamente irresistível. Deveria ser irresistível e se impor, assim como o tempo: que avança e tudo abarca, que tudo constrange, oprime, e purifica – implacavelmente. A Verdade seria talvez o tempo. Se ela realmente existe, então as pessoas devem ter algum defeito, pois como é possível questionar a Verdade? Deveria ser impossível! A linguagem não deveria permiti-lo. Quiçá deveria ser fisiologicamente impossível. E hoje, aparentemente, podemos questioná-la, e ainda nos chamam de normais – de razoáveis. Talvez ela então não exista. Talvez ele tenha razão.
Os olhos de Lilian brilhavam assim como os seus. Gostava de suas respostas. Gostava deste café e dos espelhos que se faziam naquelas janelas. Gostava das reflexões que neles via.
Olhou através do vidro para o movimento que se intensificava abaixo.
De súbito, uma multidão de botões pretos e coloridos floresceram por cima da cabeça das gentes, como o pipocar de pequenos fogos de artifício, sem cerimônia. Notou a decepção nos rostos dos que ali estavam, aborrecendo-se e correndo para procurar abrigo.
— Talvez nós corremos da chuva…
*
O café esfriava. Os raios de sol lançavam-se contra as nuvens cinzas que insistiam em entristecer o céu. Já embaixo as pessoas recolhiam seus guarda-chuvas.
— Falávamos sobre sonhos…
— Sim, sobre ratos, a verdade e sobre os sonhos serem um componente (talvez o mais perverso) desse absurdo que é nossa vida, disse Lilian.
— Isso. Falando em ratos, lembrei-me de uma conversa que tive com uma colega quando era mais jovem, mais dramática – terrivelmente dramática. Trabalhávamos juntas num outro café e um dia conversávamos sobre o que iríamos fazer na vida já feita, e a discussão sobre sonhos começou. Quer dizer, começou quando eu disse que seus sonhos não eram reais, e ela respondeu, sarcasticamente, que nesse sentido reais então seriam apenas os meus. Eu lhe respondia:
— “Inclusive os meus. Sobretudo os meus! Impus-me esse horizonte, assim como se impõe a fome a um miserável. Vê lá longe a fictícia linha: estou em sua direção a marchar diariamente, como se algum dia fosse alcançá-la, e ele a pedir trocados por aí, como se o vácuo das vísceras não lhe fosse inerente. Miragem! É o quadrúpede atrás da cenoura, o cão a perseguir a cauda…
— “Não acho – ela retrucava – Não acho não. Como assim poderia ser? Por exemplo, meu sonho, “meu horizonte”, é sair deste café, pegar meu passaporte e viajar pelo mundo, conhecer outros povos, outras culturas – outros cafés, ai! – ajudar quem precise, construir cabaninhas… Registrar tudo em fotos! Colocá-las depois na parede de meu quarto em molduras delicadas. É certo que um miserável não poderia fazê-lo, quer dizer, suas chances são bem pequeninas. Mas de tangível há algo nisso tudo, como não pensar o mesmo?
— “Veja, a única diferença entre nós e os miseráveis é que nós dormimos de barriga cheia…
— “Oh! Mas como viver assim? Atirados por aí, sem sonhos, sem propósitos – sem alegrias?
— “Pois digo eu: com sonhos, com propósitos, com “alegrias” – como é possível viver? Sabendo que muito nesses sonhos não depende de nós – talvez nada dependa! Que tudo no fundo são meras apostas, o saltar da beirada do abismo… Acreditar em algo apenas para permitir-se a dormir tranquila. Onde colocar meus pés? Sobre qual chão fundar minhas catedrais? Tantas e tantas ruíram… Que sonho suportará o peso desse violento céu azul? Quer dizer, talvez seja possível, veja de novo os miseráveis: seu sonho é um prato de comida, uma cama, um teto e travesseiros. Que fácil! Será isso um sonho? Um sentido para a vida…? Travesseiros? Não! Os meus propósitos, você pergunta? Enterrei-os no quintal de casa, ao lado da composteira. Mas você se lembra do quanto me arrastei sobre eles, de como esfolaram minha pele, de como esgotaram minhas lágrimas… Mas há pouco tirei-os de lá, não aguentei. Sacudi os vermes todos. E o que fiz então foi pintá-los em tons mais simples, apagados – toleráveis. Você me fala em construir cabaninhas? Ah! Que falta me fazem aqueles ecos incompreensíveis, o cume das prateleiras distantes, as pedras, os besouros, a terra debaixo das unhas…”
— Esses tempos não voltam mais, disse Lilian.
— Foi isso o que ela me respondeu: a infância já foi, não é mais. Doce e despreocupada infância… Depois disso ela passou a não conversar mais comigo. Poucos continuaram conversando.
— Sim, eu me lembro. É uma loucura que você ainda esteja viva. E conseguiu “fundar suas catedrais”? – Parece que hoje você voltou a sorrir.
— Descobri os livros. Descobri os livros Lilian. Descobri que alguns deles são uma espécie de chave que faz esse grande caleidoscópio que é a realidade girar. Veja, tudo é sempre o mesmo, o que há por aí não é novo, o todo é estático – a realidade é composta pelos mesmos e finitos pedacinhos de vidro colorido e lantejoulas, os mesmos rodapés, chuvas, trovões, pessoas e sentimentos ruins. Os magos que escrevem os livros conseguem de algum modo alavancar o disco e fazer a imagem da realidade alterar-se – sempre com os mesmos elementos, como acabei de dizer. São magos Lilian, magos de fato. Como conseguem forjar a mística chave? Vê que a rigor não inventam palavras, nem compõem um novo alfabeto ou adicionam caracteres novos. Vê que aí está o encanto: no caldeirão de papel, misturam-se os versos, as letras e os símbolos. Ali os magos são capazes de conceber uma ordem específica de palavras, construir frases e parágrafos de tal maneira que seu conjunto pode transformar a própria imagem do real: o ato de ler invoca o feitiço. Fiquei obcecada pelas chaves Lilian: dizem que o primeiro mago nasceu da imagem gerada por uma delas, dizem que a primeira chave foi furtada da lendária biblioteca hexagonal…
— Essa catedral segue em pé, disse Lilian.
— Aparentemente sim. Já que estamos em um tempo de construções… Lembrou-se do verso “Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso”.
— Vim aqui para lhe contar minha descoberta sobre os magos e as chaves Lilian, e tudo o que vi: o labirinto no Sul, a tabacaria do português, o cárcere siberiano, a dama e o verde, os sabres e os cercos, o estouro das carabinas num deserto brasileiro, a maldita luta dos iguais, a arte, as bibliotecas, as liberdades, e tantas coisas. O real é estático. Sua imagem um turbilhão – o real é o caleidoscópio… Ou talvez não. Talvez enlouqueci, como dizem. Mas você sabe que não, né? Às vezes me esqueço que você já ouviu e sabe de tudo isso Lilian. Às vezes me esqueço que seus olhos são os meus. – Olhava para a lâmina que refletia seu rosto.
Fitou a ponta do cigarro. Já sentia o calor fraco da brasa alaranjada se aproximando dos seus dedos. Agarrou algumas mechas do cabelo, levando-as ao nariz, percebeu que exalavam um aroma de tabaco. Ignorou. Crispou suavemente os lábios, como alguém que se incomodou, mas quer continuar indiferente. Bebeu o que sobrou do café gelado, levantou-se e saiu.
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