ALERTA DE GATILHO: RELATO DE ESTUPRO
Mariana Ferrer,
Essa carta é para você, mas antes de tudo ela é para mim. Então desde já agradeço pelo espaço.
Eu conheço pouco, quase nada da sua história. Sei de forma superficial o que vem acontecendo esses meses que passaram, mas isso não é sua história por completo, tenho certeza que sua história é mais que isso. No entanto você entra para a história para mim como uma mulher que lutou por si mesma, se expôs e foi atrás. Que fique na história sua força e garra diante de um momento de tamanha vulnerabilidade. Eu te agradeço por isso, pois a barra não é fácil. Você segurou essa barra não só por você, mas por mim e tantas outras mulheres também.
Eu também fui estuprada. Eu tinha 16 anos, aconteceu no banco de trás de um carro por um homem de 27 que tinha conhecido menos de uma hora antes em um bloco de carnaval duas ruas acima. Eu lembro de sair do carro ainda me vestindo e correr em direção à minha casa com meus tênis na mão, sem nunca olhar para trás. Quando cheguei no local do bloco, parei de correr e me fiz uma pergunta que nunca achei que faria: “Eu fui estuprada?”. Minhas pernas falharam e caí no chão em prantos. A cada vez que me reergui, caía de novo, os passos cada vez mais dolorosos de dar. Meu corpo me traía e eu a ele.
No dia seguinte acordei com dor. Levantar doía, sentar ainda mais. Eu era virgem, que nem você. Passei o dia sentindo a minha primeira vez a cada movimento, como você também deve ter sentido. E não sei pra você, mas o que mais doía era a sensação de vazio, que acompanhava a sensação de invasão, todas as inúmeras vezes.
Quando fiz o exame de corpo delito, um parecido com o que você fez (espero que tenha sido feito de forma mais delicada), me senti mais uma vez invadida. Arregaçada em cima da mesa, aqueles cotonetes pareciam me penetrar até a alma.
Assim foi na sala de aula quase todos os dias daquele ano, na maioria mais de uma vez. Na carteira no fundo, eu fui estuprada de novo e de novo, com direito a imagens gráficas. No quarto sozinha, nas festas, em provas, no ônibus, fui invadida silenciosamente. Não emitia um pio, nada, era só silêncio. A cabeça em pólvora.
Por isso sei muito pouco do seu caso. Ele lembra muito o meu, e isso dói, e mais uma vez me sinto invadida.
Quando meus pais foram intimados a ir à delegacia para fazer o depoimento, eu não quis ir. Não queria reviver de modo tão concreto tudo o que passei. Nesse dia, uma quarta-feira, cheguei na escola e chorei, chorei mesmo. Me acalmei e entrei na sala de aula. Me sentei no fundo e quando percebi um colega passava a mão nas minhas costas enquanto chamava a professora. Fiquei inconsolável por umas duas horas e quando respirei fundo fui em silêncio para minhas últimas aulas. Era o vazio de estar sozinha.
Na época eu não sabia que não precisava ficar sozinha. Descobri recentemente que não precisava ter sofrido em silêncio, e compartilho da sua dor hoje, Mari. Infelizmente, e felizmente também, não estamos sozinhas nessa.
Meu caso, como o seu, poderia muito bem ter sido julgado como estupro culposo, ou pior ainda, como não sendo um estupro. Isso se eu tivesse insistido nele: ele nunca chegou a ir a tribunal, eu nunca quis.
Naquela noite eu usava um shorts, uma blusa decotada e um batom vermelho. Eu tinha bebido uma garrafa de 1 litro de catuaba sozinha. Eu cheguei nele, tinha-o achado atraente. Eu até mesmo aceitei ir ao carro com ele.
Talvez isso bastasse ao juiz. Além da falta de provas, já que ele não chegou a gozar dentro de mim. Além da minha incerteza em relação a algumas partes, devido ao meu estado de embriaguez. Além da sensação de profunda culpa que eu sentia diante da situação.
Seria minha palavra contra a dele. Minha voz insegura e trêmula frente ao meu estuprador. Minha voz de menina frente a voz dele de homem.
Eu não senti que iria aguentar. Não queria me sentir invadida de novo. Você conseguiu e isso por si só é uma vitória. O resultado pode não ser o que esperávamos. Mas é uma vitória.
Que todos saibam o nome de André de Camargo Aranha, por ser o estuprador que ele é. Que todos saibam o seu nome, Mariana Ferrer, por ser a mulher que resolveu ir atrás de justiça.
Espero que tenha uma reviravolta para seu caso. Porque se o seu caso for julgado como estupro culposo, o meu também seria, e a gente sabe muito bem que isso não é verdade. Não existe algo como um estupro culposo. Ninguém estupra sem querer como que cai no asfalto. Ninguém estupra como quem erra a sala de aula. Quem não quis foi a gente, não ele.
Mas se isso não acontecer quero dizer que o que fez é muito importante. Você é um exemplo para muitas mulheres de alguém que levantou a voz, saiba disso. Nós temos voz. Ainda há esperança para o próximo julgamento, para o próximo veredito. É preciso que haja voz.
Mando um abraço, mas só o aceite se quiser,
Maria Augusta
São Paulo, 03.11.2020
Imagem da capa: Michel Dani
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