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Como o esporte serviu de propaganda para ditaduras



“A propaganda é a alma do negócio”, já diziam os grandes marqueteiros ao comentar sobre como empresas devem vender seus produtos e serviços. Não é muito diferente quando pensamos em governos – de algum modo, o regime em vigor deve vender a ideia de que seu governo é bom e de que busca o melhor para o país através da promoção de mudanças. Os esportes foram muito utilizados por governos autoritários para esse propósito, afinal, torneios esportivos são eventos muito simbólicos que despertam um sentimento de união e de superação, além de oferecerem algum entretenimento e desviarem o foco de ações reprováveis. Nesse contexto, nada melhor para uma ditadura do que ver seu país ganhando uma competição internacional cujo esporte é a grande paixão nacional. E foi exatamente isso que aconteceu em 1970, quando a seleção brasileira se sagrou tricampeã da Copa do Mundo durante a fase mais repressiva da ditadura militar.

Carlos Alberto (capitão da seleção) e ditador Emílio Médici levantam a taça de campeão (Créditos: GETTY)


Foi justamente durante o governo do general Médici que a propaganda deslanchou através do trabalho do militar e intelectual Otávio Costa, encarregado de seu desenvolvimento. De acordo com Otávio, uma grande propulsora do sucesso popular da Copa do Mundo de 1970 foi a canção “Pra Frente Brasil”, de Miguel Gustavo, que até hoje é reconhecida por grande parte dos brasileiros. O governo militar foi responsável pela divulgação da música que embalou a população durante a conquista do tricampeonato.


“Noventa milhões em ação Pra frente Brasil, no meu coração Todos juntos, vamos pra frente Brasil Salve a seleção! De repente é aquela corrente pra frente, Parece que todo o Brasil deu a mão! Todos ligados na mesma emoção, Tudo é um só coração!”


Foi também nessa época que um famoso slogan da ditadura surgiu: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Segundo Otávio, esse slogan provavelmente veio do núcleo de comunicação da área de repressão que, de acordo com o militar, foi um produto de guerra psicológica por parte do governo. Aliás, o sucesso dentro dos campos escondia muitas ações que ocorriam nos bastidores da seleção. Talvez o caso mais emblemático tenha sido a intervenção direta do regime militar para a demissão do técnico João Saldanha – responsável pela classificação do Brasil para a Copa – apenas dois meses antes do torneio. Apesar do ótimo desempenho da seleção durante a fase classificatória – com 6 jogos e 6 vitórias – Saldanha preocupava o governo brasileiro, já que suspeitavam que o técnico utilizava as viagens ao exterior para levar documentos que denunciavam a tortura realizada pelos militares no Brasil.


O governo considerava os acontecimentos dentro da seleção brasileira tão importantes que atuou para que diversos militares passassem a ocupar cargos na CBD (Confederação Brasileira de Desportos – que depois passou a se chamar CBF). Foi nesse período que o brigadeiro Jerônimo Bastos, diretor de esportes da CBD, nomeou o major Roberto Guaranys como responsável pela segurança da comissão brasileira. Guaranys, além de ter sido um dos torturadores da ditadura, possuía a confiança do ditador Médici e tinha como função reportar o cotidiano da seleção e garantir que as coisas estavam em conformidade com a vontade do regime militar. A presença do major nos trabalhos da delegação brasileira e de outros militares na CBD foi inclusive impedida por Saldanha antes de sua demissão, como revelado pelo próprio técnico ao comentar sobre seu futuro texto: “Vou escrever uma crônica sobre a presença exigida e por mim repelida de policiais espancadores na concentração. Foram barrados por mim, mas depois eu fui barrado por eles. Afinal de contas, estavam no poder”. Em meio a esses acontecimentos, a conquista da Copa após a vitória por 4 a 1 sobre a Itália – junto ao milagre econômico – ajudou a melhorar a imagem do governo militar e contribuiu para que o general Médici se tornasse uma figura ainda mais popular entre os brasileiros.


A ditadura militar brasileira evidentemente não foi o único governo autoritário que utilizou o esporte como propaganda. Também no século XX, porém do outro lado do mundo e do espectro ideológico, a União Soviética procurava mostrar seu poder por esse meio. Já em 1919, a ditadura socialista realizou, em Moscou, o primeiro “Desfile de Atletas” – um grande evento em que trabalhadores que passaram por treinamento militar (obrigatório para homens entre 18 e 40 anos) participavam, espalhando o estilo de vida mais saudável do país e mostrando o poder, a força e a união dos soviéticos. Esse desfile se tornou anual a partir de 1931, sendo realizado em diversas cidades da URSS, e o culto ao líder em torno da figura de um dos ditadores mais sanguinários da história, Josef Stalin, se tornou uma importante marca do evento. Era possível ver fotos do autocrata pelos desfiles e durante um deles, o de 1936, surgiu o slogan “obrigado camarada Stalin, por nossa infância feliz” que logo se popularizou.


Atletas carregam imagem de Stalin durante o Desfile de Atletas na URSS (Créditos: Anatóli Egorov/МАММ/russiainphoto.ru)


Os esportes eram tão populares na União Soviética que, em 1939, o Dia da Educação Física foi estabelecido no país e os desfiles passaram a ser realizados nesse feriado. O último desfile ocorreu em 1954 – um ano após a morte de Stalin – contudo, as competições esportivas continuaram sendo uma importante ferramenta do governo que tinha como objetivo mostrar a força da ditadura soviética pelo mundo. A partir de 1952, a URSS passou a participar dos Jogos Olímpicos e conseguiu a primeira colocação no quadro de medalhas em 6 de suas 9 participações. O bom desempenho nas Olimpíadas era uma boa forma de propagar a dominância do regime socialista não apenas mundialmente, mas também internamente, aumentando a popularidade do governo em relação à população local e projetando os sentimentos de união e patriotismo.


Propaganda com slogan “Obrigado camarada Stalin, por nossa infância feliz” (Créditos: Anatóli Egorov/МАММ/russiainphoto.ru)


A União Soviética não só se preocupava em ter bons resultados nos esportes como também procurava ajudar outros países aliados politicamente. Entre esses países está Cuba, que a partir da Revolução de 1959 passou a ser governada pelo ditador Fidel Castro, o qual esteve no comando da ilha até sua substituição pelo seu irmão Raúl Castro em 2008. Até 1959, Cuba contava com não mais do que 13 medalhas olímpicas em toda sua história, porém, após o estabelecimento do governo socialista, o país passou a ser uma grande potência continental nos esportes com mais de 200 medalhas olímpicas desde então. Nos Jogos Pan-Americanos de 1991, sediados em Havana, Cuba conseguiu o grande feito de ficar à frente dos EUA no quadro de medalhas e, nos Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, atingiu seu auge ao ficar em quarto lugar no quadro de medalhas.


Fidel utilizava o esporte como marketing para seu governo frente ao mundo. Entretanto, com a queda da União Soviética, os recursos para o esporte em Cuba foram ficando cada vez mais escassos e os esportistas desertores (os que abandonam o país) mais comuns – nas Olimpíadas de 2008, em Pequim, o país ficou na 28ª colocação no quadro de medalhas. Apesar disso, a ditadura mais longa ainda em vigor na América Latina procura recuperar o prestígio e a dominância nos esportes. Em 2013, Cuba, pela primeira vez desde 1961, permitiu que atletas cubanos atuassem em ligas estrangeiras e, a partir de 2018, passou a permitir que atletas que atuam fora da ilha sejam convocados para a seleção nacional. Com isso, o governo cubano espera ganhar o protagonismo esportivo novamente, o que seria uma boa propaganda para o regime.


Esses exemplos, assim como tantos outros, mostram como os eventos esportivos são utilizados por governos autoritários como formas de marketing político, mobilização nacional e máscara para crimes contra a humanidade. Apesar do entretenimento gerado pelas competições e do clima amistoso entre as nações que vemos pela televisão, devemos lembrar que bons resultados esportivos não justificam ataques à liberdade e aos direitos humanos de um povo –que seja esse o verdadeiro espírito de união e fraternidade gerado pelo esporte.




Autoria: Rafael Coquejo

Revisão: Julia Rodrigues e João Vítor Vedrano

Imagem de capa: Mariana Hashimoto

 

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