No texto de hoje, nossa membra Carolina Zweig traça um paralelo brilhante sobre os insanos tempos atuais com o famigerado Caso Dreyfus, que chacoalhou a sociedade francesa do século XIX da mesma maneira que o fenômeno Bolsonaro interfere no coletivo de uma sociedade que vivencia o caos da pandemia de COVID-19.
Nunca é fácil entender o que se passa na cabeça dos que estão do outro lado de um espectro tão polarizado como o que vivemos. Infelizmente, não é a primeira vez que uma rachadura divide a sociedade. Felizmente, podemos aprender algo com essas crises anteriores. Minha proposta hoje é contar a trama que originou um filme que ninguém viu (nem mesmo eu) para no fim relacioná-lo com os tempos sombrios em que vivemos. A fábula de hoje é sobre o escândalo que colocou em pauta o próprio significado de liberdade.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade... para quem?
Em 1894, na Terceira República Francesa, o capitão francês e judeu Alfred Dreyfus foi acusado de traição e sentenciado à prisão perpétua. Alegou-se que havia concedido à embaixada alemã de Paris informação militar secreta da França. Dois anos depois, os investigadores encontraram evidências de que fosse outro o culpado, mas, baseando-se em documentos forjados, a corte militar rapidamente absolveu o novo acusado e aumentou a acusação contra Dreyfus. Em 1899, foi convocado um novo julgamento de Dreyfus, que resultou em tê-lo como culpado novamente e condenando-o a 10 anos de prisão.
Muitos intelectuais se manifestaram, gerando um movimento de inconformismo e resultando em um grande número de prisões. Foi inclusive nesse momento que surgiu o termo “intelectual”, definido como artista que participa e se manifesta ativamente no campo político. Entre os protagonistas, estava o escritor Émile Zola, que publicou no jornal L’Aurore uma carta ao presidente acusando abertamente todos os que contribuíram para a condenação ilegítima de Dreyfus.
Figure 1: Carta traduzida completa em http://www.omarrare.uerj.br/numero12/pdfs/emile.pdf
Dreyfus solicitou um novo julgamento, mas, para evitar o prolongamento do escândalo, o então presidente francês Émile Loubet ofereceu anistia a todos os presos políticos por causa do caso, exceto o próprio Dreyfus, que recebeu a opção de que o seu crime fosse perdoado. Em vez de inocentado, exigia-se que ele admita a culpa para recuperar sua liberdade individual. Esse escândalo dividiu a sociedade francesa entre os Antidreyfusards, contrários à reabertura do caso, e os Dreyfusards, que buscavam o reconhecimento da sua inocência. Mas o que estava de fato em pauta?
Charge publicada no jornal Le Figaro em 1898, disponível em https://fr.wikipedia.org/wiki/Un_d%C3%AEner_en_famille. Tradução livre: Um jantar em família / "Acima de tudo, não falemos sobre o caso Dreyfus!”/ “Eles falaram sobre o caso...”
O argumento dos AntiDreyfusards era de que, mesmo inocente, um verdadeiro francês se sacrificaria pelo país e aceitaria a condenação em nome da estabilidade nacional. O discurso dos Antidreyfusards pode ser associado ao de um “sistema que, (...), quer que os cidadãos sejam completamente dominados para que a nação seja soberana, e que o indivíduo seja escravo para que o povo seja livre.” ¹ Esse é um conceito de liberdade associado à Antiguidade Clássica e que se encaixa em ideologias construídas sobre pilares de patriotismo, união e a valorização do exército. Os AntiDreyfursards acreditavam que reabrir o caso seria uma tentativa dos inimigos da nação de deslegitimar o exército e enfraquecer o país.²
Já o posicionamento dos Dreyfusards nos parece um pouco mais intuitivo – não é à toa que se enquadra no conceito moderno de liberdade. Mas não é que fossem progressistas à frente do seu tempo, muito pelo contrário: seus ideais de justiça e verdade ecoavam os da Revolução Francesa, ocorrida 100 anos antes. Esses mesmos princípios já tinham a essa altura se traduzido em leis³ que garantiam a liberdade de assembleia, de imprensa e de associação – apesar das quais Zola foi multado e condenado à prisão pela publicação da carta por difamação. Assim, Dreyfusards defendiam a inocência do acusado a todo custo pois achavam que o princípio da liberdade individual não deveria se subordinar ao da segurança nacional⁴.
Outra diferença importante entre os dois grupos era a questão das minorias: em nome da liberdade dos antigos⁵, deveriam ser excluídas ou convencidas a se tornarem parte da maioria. Dreyfus foi exilado em uma prisão na Guiana Francesa e depois lhe foi oferecido perdão em vez da inocência, como dando razão aos que o culpavam. Isso era inaceitável para os Dreyfusards, já que sob a liberdade dos modernos, minorias devem ter a liberdade de ser minorias: devem ter a garantia de não ser excluídas ou assimiladas por arbitrariedade do governo. Ainda, a incriminação de um militar judeu em um país majoritariamente católico (apesar da laicidade introduzida na Revolução) foi tida um ato de marginalização de uma minoria.
Aos nossos avós pediram-lhes que fossem à guerra.
A nós, que ficássemos no sofá.
Hoje, em que é difícil não sentir na própria pele – ou na saudade de sentir o toque de outras peles – o dilema entre exercer o que Benjamin Constant chamou de Liberdade dos Antigos e Liberdade dos Modernos: os primeiros defendem restrições à liberdade de ir e vir em nome da segurança pública, os últimos priorizam exercer a liberdade individual sem qualquer ressalva.
Na verdade, o contexto dos Antigos não lhes permitia sequer desejar ou apreciar a liberdade individual. Na Antiguidade Clássica, as guerras frequentes faziam com que fosse necessária dedicação integral dos cidadãos à defesa do Estado. Constant argumenta que a liberdade dos antigos não foi perdida, apenas tornou-se menos valorizada, e alerta de que esse quadro pode ser revertido em alguns casos – como pareceu ocorrer entre os Antidreyfusards e parece ocorrer hoje, por causa da guerra ao vírus. Hoje, mais uma vez, membros de uma sociedade se veem convocados à enfrentar um perigoso inimigo comum.
A questão individual surge como invenção dos modernos em adição (e não substituição) da coletiva. Estes querem o direito de não se submeter a nada que não as leis, originarias de um pacto social. A escolha entre privilegiar individualidades (principalmente quando minoritárias) ou abdicar delas está sempre presente, mas a ferida arde mais durante grandes crises como pandemias.
Para que o país consiga enfrentar a crise – e mais tarde sair dela – da melhor maneira possível (dadas as restrições do nosso sistema de saúde), temos hoje a quarentena como algo que Rousseau chamaria de pacto social. Assim como para os Antigos era preferível aquilo que garantisse a Soberania Coletiva, quem defende o isolamento social está abdicando de direitos, prazeres e privilégios para proteger o sistema único de saúde, proteger aqueles que prestam serviços essenciais e enfim, proteger o País.
A liberdade dos Modernos vai além: inclui liberdade religiosa, de profissão, de propriedade, de expressão e todas as outras liberdades individuais, limitadas apenas pela lei. Da mesma forma, no Brasil atualmente existem aqueles que querem manter sua mobilidade e sua independência financeira a todo custo. Ah, e claro: limitados apenas pela lei, como ficou claro na célebre fala do atual representante no maior cargo executivo: “Eu sou a constituição”. No entanto, verdadeiros defensores da liberdade dos Modernos não deixariam de lado a liberdade do Antigos, muito pelo contrário: colocariam os custos e benefícios sociais de fazer ou não a quarentena para chegar em uma decisão verdadeiramente ótima.
Por último, a própria ideia de minoria parece mais complexa hoje em dia, uma vez que poucos são privilegiados em comparação com a grande parcela da população que periga cair na miséria por causa da quarentena.
É claro que já estão fora de moda os discursos dos Dreyfusards e dos Antidreyfusards. Principalmente, porque tenho a impressão que quem hoje defende a Quarentena também tenha simpatizado com o grupo mais liberal do Caso Dreyfus. E o que será que os isolacionistas verticais, tão defensores das liberdades individuais, sugerem como para a diminuição de contágio entre encarcerados? Pois é, não é fácil mesmo defender um valor sob toda e qualquer circunstância.
Mas tá tudo bem, ninguém vai te acusar de hipócrita. Não faz mal ter posicionamentos tão opostos para contextos tão diferentes. É claro que você não está nem aí para a estabilidade militar de um país imperialista europeu. É claro que o seu interesse pessoal hoje está convenientemente alinhado com o interesse público de combater a pandemia que bate à sua porta - e você também não sente que isso é um atentado à justiça.
E é talvez por isso que você não deva fazer política na base do grito ou na base do “eu avisei”. E também não é hora de falar sozinho ou com os seus iguais. É hora de ligar o Zoom e falar com o especialista, o que já passou por isso, o que discordou de você e o que tem o poder de tomar grandes decisões: quais são, afinal, as intervenções eficientes e factíveis para lidar com essa crise? O quanto estamos dispostos a abdicar hoje, mesmo que não o fizéssemos normalmente? E mais importante, estamos dispostos a enfrentar os riscos e as prováveis consequências dessa decisão?
Por fim, precisamos procurar os argumentos que alcancem para convencer a todos da importância do distanciamento – seja com gráficos, imagens ou slogans. Você pode abordar o tema como uma questão racional de externalidades: os custos de ações individuais estão sendo divididos entre todos e é coordenando esforços que chegaremos em um resultado melhor para cada um individualmente. Para os liberais na economia, diria que os custos de uma pandemia superam aos de uma quarentena. Para os conservadores nos costumes, diria que proteger a vida do próximo será sempre uma atividade mais valiosa que a frequência ininterrupta a cultos e encontros privados com autoridades religiosas. O importante é não desistir só porque o outro não fala a sua língua.
Referências:
¹ Constant, B. [1819] 2005. A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos” in Escritos de Política. São Paulo: Martins Fontes.
² Tradução livre de artigo disponível na Enciclopédia Britânica (https://www.britannica.com/event/Dreyfus-affair#ref1078709)
³ Mais informações disponíveis em https://www.legal-tools.org/doc/4d17d5/pdf/
⁴ Tradução livre de artigo disponível na Enciclopédia Britânica (https://www.britannica.com/event/Dreyfus-affair#ref1078709)
⁵ Isso deriva de que na Antiguidade Grega era possível a exclusão social daquele que fizesse um uso de sua liberdade individual em discordância do esperado (fenômeno conhecido como Ostracismo).
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