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CONTRATO SOCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DO CULTIVO DE MACONHA



A teoria contratualista liberal de formação dos Estados concebe que há um contrato implícito segundo o qual os indivíduos abrem mão de determinadas liberdades para uma autoridade, na forma de governo. Diz-se pela teoria que os indivíduos firmam esse compromisso a fim de obter algumas vantagens na ordem social - como a garantia de direitos. Conforme dispõe essa concepção de contrato social, sobre a qual estão fundadas as bases das sociedades democráticas de direito, a função de garantia de direitos é atribuída ao Estado, que fica com a prerrogativa de solucionar os conflitos da sociedade, fazendo o uso da força quando necessário. Vale ressaltar que, dentro desse contrato, os pares da sociedade abrem mão da possibilidade de fazerem o uso pessoal da força, concedendo somente ao Estado a prerrogativa de se fazer uso legítimo da violência.


Se, por exemplo, eu compro de você um carro usado, recebo o veículo, mas não faço o pagamento, é função do Estado intervir para garantir o recebimento do seu direito. Primeiramente, deve o Estado me intimar a te pagar o que devo, mas supondo que eu seja demasiadamente insistente, recuso-me a acatar a ordem. Deve, então, o Estado me penalizar pelo atraso e também me impedir de obter outras vantagens na sociedade - como empréstimos e a realização de contratos de forma a me persuadir a pagar o que devo. Mas, como pessoa teimosa e mesquinha, não o faço. Em última instância, cabe ao Estado o emprego da violência de forma a me forçar a cumprir com a minha obrigação, cerceando minha liberdade em vista da proteção do instituto jurídico da soberania estatal (ferido pelo desacatamento da ordem), assim como o da compra e da venda.


Sendo a liberdade um dos direitos mais valiosos, a prisão somente deve ser utilizada como último mecanismo de controle social. Imagine o absurdo que seria se o atraso de uma semana no pagamento de um boleto levasse a polícia a invadir sua casa, apontar um fuzil para a sua família e prenderem-lhe por anos em uma cela superlotada com provisão de alimentos insuficiente. Essa seria uma reação estatal absolutamente desproporcional e desnecessária ao ato de infração cometido, comprometendo a liberdade e integridade (bens jurídicos de extrema relevância) em resposta a um ato menor que poderia muito provavelmente ser resolvido por outros meios. A importância da liberdade leva à conclusão de que os atos que não firam bens jurídicos de extrema relevância e/ou que possam ser impedidos por outras formas menos restritivas de direitos não devem ser tratados por meio da violência e da restrição da liberdade. Em sentido contrário, cabe ao Estado, no exercício legítimo de suas funções, atuar sobre a lesão de bens jurídicos relevantes - como o homicídio é para a vida - utilizando da violência, quando necessário, para cercear a liberdade dos infratores de forma a penalizar e desestimular tais práticas.


Sob essas premissas, pode-se perceber a ilegitimidade da criminalização do cultivo da cannabis para consumo pessoal no Brasil e em outros Estados de direito. Como abordado, a criminalização busca impedir práticas que sejam lesivas a bens jurídicos de extrema relevância. Porém, a criminalização somente pode existir se cumprir essa função, caso contrário, vai contra os princípios constitucionais que regem o Direito Penal. Na Constituição Federal está previsto o princípio da ofensividade, segundo o qual a tutela do Direito Penal não pode se voltar à proibição de condutas que digam respeito tão somente à esfera pessoal do indivíduo, assim como condutas que sejam minimamente ofensivas ao bem jurídico em questão. Nesse contexto, o cultivo da cannabis para consumo pessoal diz respeito tão somente à esfera pessoal do sujeito e não ofende nenhum bem social relevantemente, sendo sua criminalização, portanto, inconstitucional.


Não se evidencia, em nenhum sentido, que o cultivo de cannabis para consumo pessoal afete a coletividade. A criminalização da produção de drogas possui a finalidade de proteger a saúde pública. No entanto, não se pode dizer que o cultivo pessoal da maconha fira a saúde pública, e sim que, ao máximo, pode ser caracterizado como uma autolesão. Leve em comparação o álcool e o cigarro - ambos permitidos por lei. Em geral, não cabe ao Estado a penalização de condutas individuais que atentem somente contra si mesmo, pois é uma violação da liberdade impedir que indivíduo disponha de seu próprio corpo. A mera ideia de se estabelecer um limite de quantas calorias pode um indivíduo ingerir diariamente, por exemplo, é absurda, e mesmo assim a obesidade leva a doenças que matam milhões de pessoas por ano, ao passo que a maconha não mata uma diretamente. Da criminalização da maconha, no entanto, não pode-se dizer o mesmo, uma vez que a guerra às drogas como política criminal deixa rastros de sangue em todas as periferias do país, Jacarezinho atesta essa realidade.


O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) defendeu que a política criminal de drogas é fracassada e que existem diversas medidas terapêuticas e educacionais mais eficientes que a prisão para evitar o aumento e continuidade do consumo. A política de drogas, implementada em 2001, em Portugal, serve como exemplo de alternativa: descriminalizaram os usuários e os aproximaram a serviços de saúde, obtendo ótimos resultados com a redução do uso e do número de overdoses¹. Nesse sentido, evidencia-se outra ilegitimidade da política penal que criminaliza o cultivo pessoal: ela não é o último e necessário recurso estatal para a solução da questão do uso de drogas na sociedade.

Em suma, a aplicação da Lei de Drogas sobre o cultivo pessoal da cannabis para consumo próprio é inconstitucional. Isso decorre do fato de que essa aplicação viola o princípio da ofensividade por criminalizar uma conduta que deva ser considerada restrita ao espaço de autonomia individual. Ademais, a criminalização de tal conduta conflitua com o princípio da intervenção mínima que rege o Direito Penal, segundo o qual a criminalização somente se justifica quando se constitui como o único meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Assim sendo, se faz imprescindível que o Supremo Tribunal Federal - urgentemente - declare interpretação conforme à constituição da Lei de Drogas, proibindo a aplicação da norma sobre a conduta do autocultivo da maconha por inconstitucionalidade, de forma a impedir a permanência desta arbitrariedade no ordenamento brasileiro que serve antes para reprimir minorias e criminalizar a pobreza do que a proteger bens jurídicos relevantes.



Revisão: Glendha Visani e Cedric Antunes

Imagem de capa: Reprodução CNSS

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¹ HUGHES, Caitlin. STEVENS, Alex. The effects of Decriminalization of drug use in Portugal. https://core.ac.uk/download/pdf/91904.pdf


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