top of page

CONVERSA DENTRO DE MINHA CABEÇA


Sentei-me num banco de madeira, daqueles de praça. À frente, a vasta clareira verde se abria. Minha posição era numa extremidade do círculo da área aberta. Atrás de mim, bosque. Na outra extremidade, um demônio, em qualquer velocidade, tentava me alcançar. Olhei para o lado. Uma criança, em pé, de cabelos e olhos perfeitamente brancos, sem gênero aparente, me olhava com curiosidade.


Oi.

Quem é?

A morte.

Ah…


Nada. Não senti nada. Nem medo, nem dúvida. Cidade alguma havia, tarefa alguma havia. Só havia eu, ali, vindo de algum lugar, não sei quando, e não estranhei. A criança me sorriu com o olhar mais doce do mundo.


Me fala alguma coisa.

Não sei o que falar…

Você tá sozinho.

É…

Muito sozinho, né?

É.

Por quê?

Não sei.

Mas a culpa…

Não existe. Só tô sozinho.


Olhei para o chão. Sem som, ela fez levitar seu pequeno corpo, e sentou-se na grama, agora à minha frente, pousando com a graça de uma pena.


Isso aqui não existe… eu te criei.

Criou.

Você não é a morte, eu só te admiti assim.

Sim. Você fez tudo isso aqui.


Minha visão estudava a área limpa de um lado para o outro. Sem forma fixa, as árvores se destruíam e se renovavam. Não eram árvores.


Anda, me diz alguma coisa. Você sabe o que dizer.

Eu tenho medo…

De quê?

Sei lá…

Você não sabe de nada, né?

Acho que não.

Acredita mesmo nisso?

Não…

Acredita em quê?

Não acredito.

Isso faz falta?

Faz.

Muita?

Não sei…

Não sabe…


O demônio estava mais perto. Não sei quanto.


O demônio…

Eu sei, eu que fiz.

Então destrua.

Não sei fazer.

Esqueceu?

Nunca soube.

Não precisa “saber”. Saiba destruí-lo.

Saber, simplesmente?

Não. Saber.

Como é isso?

Você sabe — riu.

É, hahaha — ri. Mesmo escrevendo isso, eu ri.


O demônio recuou imediatamente. Sem desconfiança, tornou a vir.


Viu isso? — disse. O bicho estava às suas costas, longe.

Vi sim.

Eu disse que você sabia.

Mas não o destruí…

Ainda não. Você está esperando.

O que estou esperando?

Algo de que você acha que precisa, ou que acha que não tem.

Esse é o problema então?

É como eu me dirijo a ele.


Se você é minha criação, tudo isso é uma conversa de mim para comigo mesmo, né? Eu sou eu, sou você, a clareira onde estamos é a minha cabeça e o bicho sou eu também.

É.

Ele vem me pegar?


De novo, ela riu. Franzi a testa e olhei o chão, fugindo novamente da personagem. Em volta dela, acendeu-se uma aura. Tornei a fitá-la, por curiosidade. Apagou. Outro sorriso. Ela estava apenas me chamando.


Olhe para a besta.


Olhei.


Olhe para mim.


Olhei. Seus olhos escureceram como um temporal. O céu aberto de um azul vívido já não mais era. Chamava nuvens escuras e relâmpagos. Uma tempestade se fez, e ventos corriam por mim. Senti frio. O bicho corria mais rápido.


Faça parar.

Não posso!

Então, o que você espera fazer? Se quer, mas duvida?

Nada! Não sei…

Pode se dar ao luxo?

Não.

Por que não?

Porque tenho de fazer.

Por que tem de fazer?

Porque escolhi assim!

Não pode voltar atrás? Não tem arbítrio?

Não depois do que vi.

O que viu?

A merda. As pessoas morrendo e matando, sofrendo. As coisas não funcionam.

Não?

Não totalmente.

E você sabe fazer funcionar?

NÃO SEI se sei!

Por que não disse “não”?

Não sei…

É porque você sabe. Faz o que tem que fazer.


Fechei os olhos. Um, dois, e os abri. O tempo voltara ao normal. O bicho caminhava novamente, não sei, ainda, a que distância. Só longe.


Você é idiota? — estava séria.

Fica quieta…

Ele não chega até aqui.

Tá vindo…

Mas não chega. Tá com medo dele?

Sim.

Por quê?

Porque ele me fere…

Ele não chegou ainda. Como te fere?

Me causa medo.

Então ele te fere porque te dá medo, mas te dá medo porque te fere?

Porque pode ferir…

Pode?

Não.


Seus olhos abriram em espanto. Foi minha primeira real afirmação.


Me fala a verdade… — pediu.

… — recuei o tronco.


Chorei três discretas lágrimas. Chorei na história, porque não sei chorar na vida, nem sozinho. Choro apenas por amor, não por pura tristeza. Não que eu saiba.


Eu tô sozinho nesse mundo, entende? Você sabe disso, nem precisa me perguntar nada. Tenho pessoas que me amam, que se preocupam. Que perguntam, que chamam, que se aproximam, mas por que eu me sinto sozinho?

… — ela calava-se.

Eu sou estranho, entendeu? Sou diferente. E eu tenho medo de rejeição, de reprovação, e eu sei bem o porquê. Sei dos meus traumas de infância, sei de onde vem essa merda toda, e ainda assim, não vai embora. Eu questiono minha aparência, minha inteligência, minha força física, emocional… minha destreza, minha índole, minha pessoa, minha nobreza, se existe. Eu me machuco pra caralho, você entende? Você não pergunta mais nada, porque sabe que eu só tenho que falar.

É.

Falar para ti?

Para qualquer um. Falar.

Então eu me reservo, eu me fecho num círculo, numa rodinha interna com uma cacetada de demônios iguais àquele lá. Minha cabeça vira uma zona porque eu me dei uma missão difícil pra caralho de cumprir nesse mundo e não deixo ninguém chegar perto enquanto tenho que cumpri-la. Aí me sinto sozinho. Eu já tentei, em outra época da vida. Eu era uma personagem, um parvo, alguma merda assim. E agora eu sou eu?

Parcialmente.

Parcialmente, é. Eu não sei se consigo chegar ao final sozinho.

Consegue, mas nem precisa.

Sei lá. Eu tenho muito carinho... Eu gosto de contato, de intimidade, então posso ter me convencido de que preciso disso e de que esse é o problema. Tem uma galera que convive comigo e nem faz ideia do que eu sou, de quem eu sou. Devem ter a noção errada, não que seja ruim. É só inexata, o que me deixa ainda mais sozinho, e não é culpa de ninguém…

E aí?

Aí que foda-se, eu sei. Mas não literalmente, porque minha cabeça continua ligando. E não sei como resolver.

Se controla.


Respirei. Ela estava certa. Controle.


Tô perdido nas minhas ideias, nem sei o que dizer.

Volta da parte de agora, em que você é parcialmente você. Por que parcialmente?

Porque não sei ser eu lá fora, salvo em alguns momentos.

Ainda tem medo?

Tenho…

Do julgamento, da impressão, de qualquer coisa que venha de fora pra dentro.

É…

Por quê?

Porque minha cabeça se acostumou com a ideia de perigo, de que isso pode me ferir. De que estou abaixo de qualquer pessoa.

Você tem o olhar analítico o bastante para saber o que desperta esses sentimentos em você. Sabe o que, nas falas das pessoas, nos olhares e nos movimentos, faz com que se sinta assim. Você sabe de onde vem a comparação. E sabe que essas coisas são delas, não suas. Nada vem de fora pra dentro se você não deixar.

Sei.

Mas não sabe viver à parte disso?

Não…

Pois sabe, sim.

Sei?

Sabe. Você me deu a resposta, disse que se acostumou. Agora desacostume-se. Você é a mente consciente desse teatrinho todo, eu sou sua intuição. Confia mais em mim e para de pensar demais, porra.

Posso tentar.

Admita a hipótese em que eu estou certa. Eu, quem você afigurou ser morte. E aí? A partir disso, resolva seu problema, chegue a algum lugar.


Olhei o demônio. Ele havia parado há algum tempo. Me encarava.


Eu tô calculando meu comportamento…

… — ela sorriu.

…esse tempo todo. Calculando meu olhar, minha linguagem corporal, minhas falas, meus roteiros. Eu faço roteiros de última hora…

Sim.

Por medo.

Medo.

Deles?

Não sei. Será? — ela sorriu.

Não. De mim mesmo. De como eu reagiria às possíveis reprovações.

Ah, então caímos no cerne da questão. Se é com você, o problema tá aqui neste lugar, não tá?

Não exatamente.

Por que não?

Porque eu o criei de uma impressão. Ele não tem fundamento de existir.

Então aquele capetão lá é o quê?


Olhei à frente. Estarrecido, dei por mim que ele sumira por um instante. Antes que eu pudesse me surpreender demais, ele voltou a existir.


Por que está oscilando?

Porque você é um imbecil, hahaha — gargalhou.

… — hesitei.

Ele é a expressão do seu probleminha. Não existe quando você se depara com a realidade, mas você não se acostumou com ela.

Que realidade?

Ninguém tá ligando. Se você for você ou o curupira lá fora, o máximo em que poderá se transformar é conteúdo de papinho por um tempo ínfimo, ou um pensamento breve na cabeça de alguém.

Hm…

Mas você é diferente. Você é tudo o que é e sabe que sua existência pode causar ódio, medo, asco ou admiração, porque você é estranho, né? E quando você foi bizarro na vida, já não causou todas essas coisas, seja num contexto, seja em outro?

Já.

E aí?

Nada…

Pois é, nada. Seu medo é irracional. O sol ainda tá brilhando.

Como me livro dele?

Sabendo. Forçando a barra. Sabe por que eu penso que Deus não interfere nas vidas mortais? Se existe Deus, claro.

Por quê?

Porque quando somos carregados de um lugar para o outro, perdemos a experiência do caminho até ele. Perdemos o pé na terra, o passo após o outro, o processo e o sentimento da ida.

Mas não fomos, no fim?

Não, foram por nós. Não é uma chegada, é só uma nova situação.

Então o que tenho de fazer é andar?

É, mas não do jeito deles. Para de calcular seus passos.

Então só andar?

Só andar.

Sem pensar em nada?

Não exatamente. É mais difícil que isso. Sabe quando você tem que esvaziar sua mente inteira para ir dormir por causa daquela insônia de merda?

Que que tem?

Agora vai fazer algo ainda mais difícil. Vai se livrar de uma ideia apenas, deixando todo o resto. Tá pensando naquele jogo de fliperama onde você pega os bichinhos com a garra, né?

É.

Essa porra aí mesmo. Faz isso.

Tá…

E eu sei que é difícil, mas assim… hm.


Silêncio. Esperando, inerte, a criança me assistiu gritar quando uma saraivada de flechas me acertou as costas. Uma dor lancinante de mil açoites e navalhetes me corria a pele. Arqueei meu corpo para frente e fechei os olhos, absorvendo a onda de dor. Berrei.


Levanta daí.

PUTA QUE PARIU, OLHA O QUE FIZERAM!

Quem fez o quê?

ELES ME MACHUCARAM!

Ainda estamos aqui dentro, Rodrigo. Eles quem?


Me calei. Estupefato, abri os olhos e endireitei o corpo. Girei o tronco. Atrás de mim, nenhum arqueiro. Em minhas costas, nenhuma flecha. Fitei o bosque com o olhar vazio. Vaguei o rosto pela vegetação até tornar à clareira. Como se nada tivesse acontecido, ela voltou a falar.


Reparou que eu tô mais solta agora? Mais do que no início do texto?

Sim… — aceitei a continuidade.

É porque você tá entendendo o que eu tô falando aos pouquinhos. Tá se preocupando menos com a extensão desse texto e com o julgamento do leitor. Você conversa com pouca gente desse jornal, e pouca gente vai ler e menos gente ainda vai entender o que você tá tentando dizer. Talvez ninguém nem queira entender, mas esse texto é seu mesmo, não é? Agora, eu tô falando mais do que você.

Verdade.

Tô me aproximando de ti, minhas falas tão mais parecidas com as tuas. Antes de me fundir contigo, deixa eu continuar o raciocínio. Foda-se o tamanho disto aqui.

Ok.

Quando você sair de casa amanhã, pensa nisso. Presta atenção em você mesmo, mas não de forma calculada, nem de forma condenatória ou determinista. Se olha com carinho, sinta-se à vontade, em casa. Você se põe para baixo, então tem o costume de ser bonzinho com os outros, de trabalhar para que se sintam bem com a sua presença. Não é lá o melhor nisso, aliás. Tem medo de causar desconforto, raiva ou qualquer coisa negativa. Você tem medo de reprovação, então não inicia conversas, só sustenta elas com esforço, não por dificuldade de conversar, mas porque tem medo de qualquer resultado negativo que apareça na conversa POR CAUSA de você. Por isso, é fácil as pessoas te subestimarem.

Cacete…

Aí, elas saem da conversa depois de um tempo sem nem ligarem pro que você disse direito. Não por ser besteira, mas porque, provavelmente, elas tavam com um pensamento parecido com o seu, ou oposto, e, talvez, mais leve, porque tua mente não é lá das mais tranquilas.

Vai saber…

E, com alívio, você respira, porque a conversa acabou. Então, no final das contas, por causa do seu medo, e, talvez, por causa da OUTRA pessoa, a conversa INTEIRA foi uma barra forçada e pelo menos um de vocês não a aproveitou como conversa mesmo.

Você já se sentiu muito estável consigo mesmo sendo alguém que você não era, porque tinha essa confiança a partir da personagem que você criou. E você só é “parcialmente” você no dia de hoje, porque quando se esforça numa conversa cotidiana sem ser capaz de apreciá-la, você ainda cria, mesmo que por menos tempo, uma outra personagem, não mais tão diferente de ti. Ainda assim, uma personagem. E agora, você não tem confiança, porque junto com a sua naturalidade, surgiu novamente o medo de ser rejeitado, de ser reprovado, de falhar. Você tem ideia do que é capaz de fazer se não tiver entraves?

Não faço ideia.

Eu faço, e é por isso que somos diferentes partes de uma mesma coisa. Sou a parte da tua pessoa que acredita, que sabe, que afirma, que corre. Eu não preciso de aparência nem de rótulo, nem mesmo de gênero. E por afirmar, eu tô de costas pro capeta. Eu sei que ele não existe. Ainda assim, não possuo forças contra ele, porque quem o criou foi você.

Eu?

Você deve achar que eu sou mais poderosa do que você, mas não. Eu não chego nem perto…

Tá falando sério?

Eu sou destruidora, por isso “morte”. Você é criador. É preciso mais força para amar do que para destruir nesse mundo. O perdão é mais difícil de conceder do que o julgamento. Este é imediato.

Entendo…

Essa parte de nós é linda, sensível e bondosa. Conserva isso, não machuque a sua personalidade por ninguém neste mundo, nem no outro. Conserva, conserva. Você não gosta de mim falando isso porque tá com medo de soar arrogante? Afinal de contas, eu sou você.

Não. Agora não.

Muito bom. Tá mais tranquilo agora? Você gostou desse formato de texto, não é? Provavelmente vai fazer mais disso. Só não fica tristinho se o povo não gostar, hein? Seu corno.

Cala a boca. — dei uma risada calma, em paz. Ela sorriu.


Levantei devagar e dei um passo adiante. Abaixei, e, com cuidado, peguei no colo a criança em minha frente. Aproximei-a de mim como quem abraça uma filha, com amor. Gerando vibrações, nossos corpos se reformaram numa só massa, maior e mais firme, menos incerta. As árvores em volta tomaram uma só cor, uma só forma. Eram árvores, enfim. O demônio que passou todo o tempo tentando se aproximar de mim sem avançar, não mais se via.


E, como chuva, eu me fiz. Causando estranheza, raiva, medo ou conforto, e agora pouco me importava. Com a força para criar uma tempestade, resolvi tentar um impossível arco-íris, porque afirmei, excepcionalmente, minha capacidade de fazê-lo.


Autoria: Rodrigo Ferreira

Revisão: Laura Freitas e Gabriela Veit Barreto

Imagem de Capa: Imagem de criança gerada por IA (Mee6 bot, Discord)

0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Commenti


bottom of page