COTAS TRANS NA FGV, JÁ!
- Vicky Auricchio Saes e Erick Martins Rosario
- 19 de jun.
- 7 min de leitura

“Não dá para achar que pessoas trans e cis tem as mesmas oportunidades de ingresso
nas universidades. Aliás, não dá para achar que quaisquer dois estudantes terão a
mesma oportunidade de concorrer no vestibular, ainda mais em um país tão desigual
e mergulhado em violências de classe, gênero, sexualidade e raça” – Laura Lua Mendes,
bacharelanda de Humanidades na Universidade do ABC.
Há treze anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade das cotas universitárias para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI) e de baixa renda. Por unanimidade, os ministros compreenderam que as políticas afirmativas fomentam a Justiça Social e prestigiam o princípio da igualdade da Constituição Federal. Desde então, as políticas afirmativas para pessoas PPI e de baixa renda se expandiram pelo Brasil, atingindo até mesmo as instituições privadas como a Fundação Getulio Vargas (FGV).
Em 2023, o Vestibular por Demanda Social e Diversidade (DSD) da FGV teve sua primeira edição, contemplando os candidatos às Escolas de Direito de São Paulo (EDESP), de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) e de Políticas Públicas e Governo (EPPG). Atualmente, as vagas destinadas a esse modelo do Processo Seletivo são oferecidas para alunos oriundos de escolas públicas, bolsistas integrais ao longo do Ensino Médio ou autodeclarados PPI.
Paralelamente a essa conquista na Fundação, as universidades públicas iniciaram uma nova luta por inclusão: a ampliação das cotas para pessoas trans, travestis e não-binárias. No ano de 2018, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi a primeira instituição pública de ensino superior a criar políticas afirmativas para essa população. Nesses sete anos, uma série de outras universidades públicas também implementaram esse sistema em seus processos seletivos, como a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Pioneira paulista em incluir as cotas trans nos seus vestibulares, a UFABC já tem colhido resultado dessa inclusão. Em fala à Gazeta Vargas, Laura Lua Mendes, bacharelanda de Humanidades da instituição, afirmou: “Mesmo tendo a oportunidade de ser bolsista no Colégio Bandeirantes, que é um colégio de excelência acadêmica, só pude ingressar na UFABC por conta das cotas trans. Durante o ensino médio sofri muita transfobia dentro e fora do ambiente escolar; tive depressão, faltei meses na escola, abaixei meu desempenho acadêmico e me senti despertencida em todos lugares. Saber que estava tendo aulas em um colégio de elite e mesmo assim não tinha um desempenho tão bom nos vestibulares me fez desenvolver forte auto desprezo e me fez considerar desistir de tudo diversas vezes. Posso dizer com absoluta certeza que ingressar na UFABC pelas cotas trans mudou (e talvez tenha salvado) minha vida”.
Além disso, a reivindicação pela adoção de cotas trans é debatida no presente pela Reitoria da Universidade de São Paulo (USP). Nos últimos meses, seus estudantes têm se mobilizado por meio de paralisações e manifestações em favor desta inclusão nas políticas afirmativas existentes das provas da Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST).
Procurada pela Gazeta Vargas, a diretora LGBT do Diretório Central dos Estudantes (DCE) Livre da USP e militante da Coletiva Xica Manicongo, Ekop Novis dos Santos, declarou: “Estudo Direito na USP e esse é um dos cursos que menos tem pessoas trans. Isso foi uma coisa que sempre me incomodou. Quando saía da Estação da Sé e ia para São Francisco, encontrava, na maior parte das vezes, mais pessoas trans em situação de rua do que estudando do meu lado na sala de aula e isso foi uma vivência muito dolorosa para mim. Então, enxerguei na luta pelas cotas trans um modo de mudar isso, me indignava muito a situação da nossa população na sociedade. Não só a ausência nossa na USP e em outras universidades, mas a situação de merda, de informalidade, de ter que trabalhar em call-center ou na prostituição, de muitas vezes ter que morar na rua. E compreendendo que a educação e a universidade podem ser uma forma de mudar isso”.
Diante do avanço nas universidades públicas paulistas, é preciso que olhemos também para a nossa Fundação. Por que não pensar na inclusão das cotas trans no Vestibular DSD da FGV-SP? Isso porque falar sobre visibilidade trans na FGV é, antes de tudo, falar sobre ausência. Não porque não existimos – afinal, estou aqui.
Meu nome é Vicky, sou uma pessoa não-binária, bolsista e estudante do segundo ano de Direito. Quando entrei na FGV, tive a nítida sensação de estar atravessando uma porta sozinho. Olhei em volta, procurei, e não encontrei mais ninguém como eu. Talvez houvesse. Talvez ainda haja. Mas, se existe, talvez estejam como eu no meu primeiro dia de aula: em silêncio, olhando ao redor, torcendo para não serem os únicos.
Mas, mesmo em meio à sensação de estar sozinho, encontrei pontes. A própria comunidade discente me acolheu de um jeito que fez muita diferença. Nunca precisei explicar demais quem sou para ser respeitado e, pelo contrário, colegas e entidades sempre se mostraram abertos, cuidadosos e dispostos. Acredito que essa disposição coletiva é uma das maiores forças que temos por aqui, e é a partir dela que devíamos refletir nossa posição como instituição.
É nessa tensão entre o que a instituição é e o que os estudantes fazem dela que vou ocupando meu espaço. Dentro do Centro Acadêmico Direito GV (CA), hoje como coordenador de Permanência, carrego comigo o compromisso de cuidar não só de quem, como eu, é bolsista, mas também de quem, como eu, carrega marcas da marginalização histórica. Estar ali é tentar garantir que a próxima pessoa trans que entre na GV não precise sentir que está sozinha.
A partir deste contexto, penso sobre ações afirmativas voltadas à população trans. Acredito que a FGV tem muito a ganhar ao adotar medidas como essa. Já vimos universidades públicas avançando nesse sentido e temos a chance de nos colocarmos junto a elas – e impactar, por meio dessas políticas, muito além do ingresso: atingir a permanência, a formação profissional, a ocupação de espaços de liderança.
Nesse sentido, destaco a recente fala da ativista dos direitos humanos Neon Cunha no evento realizado pelo CA e o Centro Acadêmico de Relações Internacionais (CARI) em apoio da Coordenadoria de Diversidade da EDESP, o Comitê de Diversidade da EDESP e o Coletivo Delta: "O número de pessoas trans está crescendo porque passamos a reivindicar visibilidade, direitos básicos ainda tratados como privilégios, porque estamos ocupando cargos e espaços que eram controlados por um patriarcado branco e cisheteronormativo".
Essa declaração resume com precisão o movimento que estamos construindo: uma reorganização profunda das estruturas sociais. E, para que essa transformação seja real e duradoura, é essencial garantir que pessoas trans estejam nos espaços que historicamente nos negaram – a começar pelas universidades.
É interessante olhar para o modelo do Programa de Apoio e Diversidade (PAD) no Mestrado Acadêmico da EDESP, que concede bolsas de estudos a graduandos e graduandas trans. Entretanto, ressalta-se que não é suficiente uma única política de suporte para a pós-graduação, enquanto a graduação não possui suas próprias ações afirmativas.
Apesar da estimativa de cerca de três milhões de indivíduos transgêneros, travestis e não-binários na população brasileira, apenas 0,3% deles chegam ao ensino superior, segundo nota técnica da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Colocar pessoas trans dentro da universidade é permitir que elas alcancem posições de liderança, decisão e representatividade.
É investir, a longo prazo, na construção de um mercado de trabalho mais diverso, de políticas públicas mais justas, de uma sociedade que nos enxergue não como exceção, mas como parte legítima do todo. A sala de aula é um ponto de partida, e não um limite. Quando uma pessoa trans entra na universidade, abre-se uma trilha para muitas outras. Quando permanece, se fortalece uma possibilidade coletiva. E, quando se forma, desafia-se uma lógica inteira de exclusão.
A FGV ainda precisa se olhar com mais coragem. Precisa entender que excelência acadêmica não se mede apenas por notas, mas pela capacidade de produzir justiça, diversidade e futuro.
E, nesse caminho, as entidades estudantis também têm um papel fundamental. Os Centros Acadêmicos e tantos outros grupos que moldam a experiência de ser gvniano não podem se limitar a organizar festas ou representar uma minoria que já se sente confortável nesses espaços.
É preciso assumir a responsabilidade de garantir que a FGV seja verdadeiramente de todos, inclusive daqueles que historicamente foram excluídos. A FGV e seu corpo discente não podem estar alheios à realidade brasileira. Com o Coletivo Delta retomando suas atividades, temos a chance de fazer desse grupo um ponto de acolhimento e mobilização real.
Hoje, olho para minha trajetória aqui e percebo que minha presença já é, por si só, um ato político. Mas não deveria ser. Ser trans e estudar na FGV não deveria ser algo extraordinário – deveria ser possível. Com menos resistência. Com menos solidão.
Autoria: Vicky Auricchio e Erick Martins
Revisão: Ana Carolina Clauss e Pedro Anelli
Imagem da capa: Rodrigo Amodei / @ninja.foto
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Referências
ADPF 186, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26-04-2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00009.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Nota técnica sobre sobre ações afirmativas para pessoas trans e travestis e o enfrentamento da transfobia no contexto da educação superior. Brasil: Antra, 2024.
CNN BRASIL. Conheça 10 universidades que aprovaram cotas para pessoas trans. CNN Brasil, 23 mar. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/educacao/conheca-10-universidades-que-aprovaram-cotas-para-pessoas-trans/. Acesso em: 14 jun. 2025.
FERREIRA, Rafael Duarte. Supremo publica acórdão da ADPF sobre cotas raciais na UnB. Consultor Jurídico (ConJur), 23 out. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-out-23/supremo-publica-acordao-adpf-cotas-raciais-unb/. Acesso em: 14 jun. 2025.
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (FGV). Vestibular por Demanda Social e Diversidade. São Paulo: Vestibular FGV, [s.d.]. Disponível em: https://vestibular.fgv.br/graduacao/formas-de-ingresso/vestibular-por-demanda-social-e-diversidade. Acesso em: 14 jun. 2025.
G1. Alunos da USP fazem ato pela adoção de cotas trans, vestibular indígena e melhores condições para permanência estudantil. G1 São Paulo, 8 maio 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/05/08/alunos-da-usp-fazem-ato-pela-adocao-de-cotas-trans-vestibular-indigena-e-melhores-condicoes-para-permanencia-estudantil.ghtml. Acesso em: 15 jun. 2025.
G1. Por unanimidade, Unicamp aprova adoção de cotas trans. G1 Campinas e Região, 1 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/educacao/noticia/2025/04/01/unicamp-aprova-cotas-para-pessoas-trans-travestis-e-nao-binarias.ghtml. Acesso em: 14 jun. 2025.
JORGE, M. A.; JORNAL DA UNESP. Estudo pioneiro na América Latina mapeia adultos transgêneros e não-binários no Brasil. 2021.
WEBER, Gabrielle. Cotas trans: por uma universidade em transição. Jornal da USP, São Paulo, 29 jan. 2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/articulistas/gabrielle-weber/cotas-trans-por-uma-universidade-em-transicao/. Acesso em: 15 jun. 2025.
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