Se eu lhe contasse que no último domingo vi um filme dirigido por uma jovem estreante diretora francesa, de origem senegalesa, que ganhou o prêmio de melhor direção no festival de Sandes esse ano, você se interessaria?
Aproveito e lhe falo também que o filme é um retrato de diferentes padrões sociais da feminidade, caixinhas que aprisionam as mulheres, até quando ainda não são mulheres - mas crianças. O filme aborda um tema delicado: a sexualização precoce de meninas.
Então, você se interessaria?
Agora, pense em uma situação diversa: você descobre sobre o mesmo filme através de uma imagem promocional da Netflix. Nela há quatro meninas fazendo poses e caras hiper sexualizadas. Provavelmente, você pensará se tratar de uma obra que endosse a sexualização infantil - exatamente o tema que ela pretende criticar.
E foi isso o que ocorreu com o filme Mignonnes (“Cuties”), da diretora Maïmouna Doucouré. Após boa repercussão na França e em festivais internacionais de cinema, a Netflix comprou sua distribuição e ocasionou uma repercussão negativa, principalmente no Brasil, através de posters como o descrito - inadequados e descontextualizados da intenção do filme.
(poster promocional no festival de Sundance, à esquerda, e o utilizado pela Netflix, à direita)
Cartão vermelho para a Netflix. Não à toa várias campanhas surgiram em redes sociais pedindo para que as pessoas não assistissem ao filme. Mas, sabe aquele ditado “não julgue o livro pela capa”? Leia-se, nesse caso: não julgue o filme pelo extremo mau gosto da área de marketing da Netflix.
O enredo acompanha a visão de mundo da diretora, que assim como a protagonista Amy, viveu sua infância descobrindo como equilibrar a cultura senegalesa, de religião islâmica, com o cotidiano francês e os padrões da feminidade ocidental. Em entrevista ao jornal Washington Post, Maïmouna Doucouré contou que o filme surge a partir de uma pesquisa com garotas de 10 e 11 anos, bem como de uma experiência pessoal: em um evento comunitário em Paris, assistiu a uma dança com movimentos e roupas sensuais apresentada por meninas.
Não há nudez no filme, muito menos qualquer enquadramento que objetifique o corpo das atrizes, mas, ainda assim, permanece chocante. É um daqueles casos em que a arte incomoda por se aproximar demais da realidade e, talvez, toda a polêmica gerada nos leve a uma necessária reflexão: por quais motivos a Netflix considerou que as propagandas usadas para distribuição nacional despertariam nosso interesse no filme?
Uma plataforma de streaming sofisticada, como é a do Netflix, não faz escolhas aleatórias. São coletados todos os nossos dados e, através do processamento por algoritmos, feitas recomendações personalizadas. Quem sabe, o erro publicitário da Netflix, pelo qual a empresa já se desculpou, mudando o poster do filme, seja um alerta para uma sociedade que constantemente sexualiza e oprime o corpo feminino.
Não precisa esforço para lembrar de casos recentes de abusos relacionados ao corpo infantil. Assistindo o filme, veio-me a recordação da cantora Mc Melody, no ano de 2019, quando com apenas 11 anos foi alvo de investigação do Ministério Público, junto com sua família, pelo conteúdo extremamente sexualizado que exibia em suas redes sociais, inclusive com diversos comentários de pessoas incentivando esse comportamento.
Assim, é claro que a provocação do filme Cuties é extremamente necessária, principalmente para reafirmar a importância de uma adequada educação sexual. A protagonista Amy, ao menstruar pela primeira vez, ouve de sua tia avó como será entregue aos cuidados de um homem um dia, a quem deve sempre obedecer, ao mesmo tempo, vê em suas redes sociais referências de mulheres, as quais são apenas respeitadas por exibirem o corpo de forma sensual.
Não ao acaso, a Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Regina Alves, em suas redes sociais, criticou o filme e pediu sua suspensão no Brasil. Mais uma vez, a ministra mostra, além de sua inclinação política para a censura de meios artísticos, a falta de comprometimento em debater politicas públicas de educação sexual para meninas e medidas efetivas de combate ao abuso infantil - crime, infelizmente, ainda muito comum no Brasil.
À ministra, a própria Netflix deu a melhor resposta: “Mignonnes é um comentário social contra a sexualização de crianças. É um filme premiado e uma história poderosa sobre a pressão que jovens meninas enfrentam nas redes sociais e também da sociedade. Nós encorajaríamos qualquer pessoa que se preocupa com essas questões importantes a assistir ao filme”. Dessa vez, ponto para a Netflix.
Polêmicas à parte, o filme Cuties, para além de qualquer critério técnico e artístico, se sobressai pela coragem de sua diretora, a qual se propôs a trazer um tema considerado tabu e, muitas vezes, varrido para debaixo do tapete no debate social, nas palavras da própria Maïmouna Doucouré: “A verdadeira questão em Cuties é: nós podemos, como mulheres, realmente escolher quem queremos ser para além dos papéis impostos pela sociedade?”
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