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Das dúvidas às construções - A exposição de Lygia Clark



Ninguém é obrigado a gostar de artes visuais, mas é uma boa para quem quer ter uma vida mais bonita e divertida. A Pinacoteca de São Paulo está dando uma ótima oportunidade  para quem já ama e se diverte ou para quem quer começar a ser mais feliz: uma enorme exposição de Lygia Clark (“LC”) “Projeto para o Planeta” que oferece uma viagem histórica em sua obra.


LC aprendeu de tudo. No Brasil, as formas orgânicas com o gênio Roberto Burle Marx e na França o cubismo figurativo com Fernand Léger. Fez parte do Grupo Frente, braço carioca do concretismo, ao lado de Abraham Palatnik e Hélio Oiticica, estudando o ritmo, a ocupação do espaço e a subjetividade das formas. Advogaram por uma criação que pudesse romper a separação do espectador com a obra, que permitisse a abstração dos significados e a noção da arte como um fenômeno próprio, contida em si mesma. Concretizou de vez sua posição questionadora, curiosa e radical vivendo em Paris, onde assistiu aos questionamentos e protestos do Maio de 68. Por lá, passou a fazer experimentos com seus alunos e instalações em seu apartamento, desafiando a relação da criação e do ambiente com o próprio ser.


A exposição tem uma curadoria que recorta a produção da artista em temas e não em fases, dada a perenidade de alguns assuntos no seu trabalho. A organização se divide em alguns espaços: a sala do início de suas composições até a criação dos Bichos; a sala das esculturas moles em borracha e os estudos de forma em cobre e alumínio; a sala da descoberta da linha orgânica, em seguida, o espaço da “arquitetura biológica”, passando por suas instalações e depois, a sala com seus experimentos com a body art (com o corpo, observando as sensações entre o ser e os objetos).


Faz todo sentido. Primeiro em telas, recortadas em linhas, pensando no espaço da tela. Depois, a partir desses estudos na pintura, construir da tela para o toque. Por um lapso da imaginação, ver nessas construções formas orgânicas. Nascia assim, sua obra prima: os Bichos. Torções e dobradiças em metais em que LC viu dorsos e colunas: “um organismo vivo, uma obra necessariamente atuante”. Na exposição, fofíssimas criancinhas brincando com protótipos desses bichos que em cada movimento revelavam um novo ser. “Quantos movimentos o Bicho pode fazer? Eu não sei, você não sabe, mas o bicho sabe”, refletiu LC.


De novo a partir da pintura, questionando a relação da criação artística com seu entorno, LC dispensou a moldura. Pintava nela. E a divisão entre a tela e a madeira em volta da pintura, chamou de “linha orgânica”. Tirou essa linha do plano e a pôs no chão, imaginando nessa linha as divisórias do próprio espaço tátil: uma parede, de um prédio, donde uma casa. Iniciou suas maquetes modulares, com caixinhas de fósforo, palitinhos, lascas de vidro e madeira, cujas formas vemos hoje por todos os lados na arquitetura moderna. De uma pincelada foi ao porquê da moldura, ao que fazer com o recorte, de repente uma linha no chão e dali uma parede. O recorte fez as composições e a linha, e a linha fez tudo! 

 

Novinho na escola, quando fui apresentado à artista, torci o nariz. Extasiado demais com as primeiras descobertas das proporções e segredos das pinturas do Alto Renascimento, das sombras e rostos potentes do Barroco, ou nos detalhes elegantes da pintura mercante de Flandres, a arte concreta - cerebral, pormenorizada, preto-no-branco - não emocionava nada.


Mas a exposição concretizou de vez as ideias que, mais atento e mais maduro, eu passei a entender sobre LC: o cuidado com o fino detalhe e o desassossego com esse mesmo detalhe; a esperteza de dominar o pouco e do pouco tecer dúvidas grandiosas, construindo em cima delas; o afiamento de sua mente que, a partir da pintura e da linha se posiciona cética no próprio espaço em que está inserido, desafia a normal separação entre o espectador e a arte e entre a imaginação e o mundo dos fatos - porque a criação e o pensamento intervêm nele.


Na mostra, um óculos de várias lentes me fez pensar que dá para escolher o jeito que enxergamos as coisas. LC enxergava de todos os jeitos, fazia perguntas para todas as óticas e então entendia que faltava ainda mais um jogo de lentes para entender as coisas. Ou não entender também. O importante é fazer as perguntas.


Pra quem prefere tentar entender LC de outro jeito: na moda, ela é André Courreges; na filosofia, René Descartes; na ciência, Pitágoras; na política, Angela Merkel; no tempo, a criança questionadora; na música, a flauta; na engenharia, Mies van der Rohe; no futebol, a seleção da Inglaterra. 


Se mesmo assim você não entendeu nada, tudo bem! Eu também entendi muito pouco, mas talvez LC seja para a gente questionar e fazer perguntas - por mais óbvias que as coisas pareçam ser, uma linha pode não ser  uma linha - divagar nas ideias, se deliciar com as possibilidades de não considerar o óbvio e, com paciência e alguma atenção, se preocupar menos com as respostas: coisa de quem ama e se diverte (não só a arte, mas as dúvidas e as construções). 


Autoria: Pedro Henrique Guimarães

Revisão: Laura Freitas e Sofia Nishioka Almeida

Imagem de capa: Lygia Clark em seu estúdio (1958) foto de Ferreira Gullar.


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