E OS CINÉFILOS?
- Ornito Vargas
- 28 de abr.
- 4 min de leitura
Esses dias conheci um amigo do Theo, que organiza o cineclube comigo. Depois de um tempo de conversa ele comentou, amargurado, já ter ido a uma sessão do Cineclube, na esperança de conhecer uma potencial namorada, mas vendo apenas “esquerdomachos cabeludos e de ecobag”, saiu antes mesmo do filme começar. A anedota de sua ingenuidade e frustração me provocou uma risada muito genuína. Depois de rir e defender meus amigos e suas ecobags, falei para ele “Você não vai no cineclube para achar uma namorada, você vai no Cineclube para achar um namorado”.
Essa é uma questão de amostragem estatística.
Quando temos sessões regulares do Cineclube, é comum termos só uma ou duas meninas presentes — e uns cinco ou seis, muito queridos, meninos de ecobag. Isso para não falar de frequentadores que não são heterossexuais. Nunca somos muitos, de qualquer forma; se chegamos a oito participantes consideramos a casa cheia. Os leitores desta revista devem saber que atividades culturais na Fundação não tendem a atrair alto quórum. Enfim, o ponto em questão é: há poucas meninas que frequentam o Cineclube, ou melhor, poucas proporcionalmente.
A interação toda me levou a uma reflexão sobre os papéis de gênero no meio da cinefilia. A mídia tem dado mais destaque à desigualdade de gênero na indústria cinematográfica, na qual as posições de poder das grandes produções ainda são extremamente assimétricas, e, depois da eclosão do movimento #MeToo, denúncias de assédio vêm à tona a cada alguns meses. Mas, e quanto aos espectadores? De que maneira o machismo aparece entre quem está sentado do outro lado da tela, nas poltronas dos cinemas? Ainda que discorde, a projeção do amigo do Theo sobre o público do Cineclube partiu de um estereótipo real da cultura pop contemporânea, que é o cara cinéfilo, pretensioso, supostamente desconstruído, mas, na realidade, extremamente arrogante.
Na internet, os gringos desenvolveram a expressão film bro, que abarca alguns aspectos deste arquétipo. Na minha pesquisa, encontrei alguns conteúdos interessantes sobre isso: este vídeo, este artigo e mais alguns memes no Twitter e no Tik Tok. Ainda que sua definição seja um tanto amorfa depois de rodar por tantos anos de internet, há algum consenso de que um film bro é um homem que se presume um grande conhecedor de cinema, mas tem, na verdade, um consumo centrado em filmes com protagonistas masculinos, com temas e universos centrados na masculinidade. Ao mesmo tempo, são homens que, muitas vezes, deixam passar o fato de que, analisando muitos desses filmes mais a fundo, percebe-se uma crítica à mesma masculinidade tradicional que eles, inconscientemente ou não, idolatram e romantizam. Esse é o caso de Clube da Luta (1999) e, num nível ainda mais extremo e contemporâneo, de Coringa (2019). Os protagonistas são homens incompreendidos que se revoltam contra o sistema de uma forma ou de outra, narrativa que pôde ser cooptada pelo meio incel também.
O machismo presente em nosso senso de quais filmes são entendidos como “bons”, ou, ao menos, “cults”, também valida as produções que dialogam com conceitos associados à masculinidade muito mais do que aquelas associadas à feminilidade. O padrão de ridicularização do considerado feminino acontece, é claro, com muitas outras coisas — música, moda, hobbies, etc. — mas acho o caso do cinema interessante como exemplo de naturalização desses valores. Esta lista do Letterboxd reúne alguns dos filmes associados ao estereótipo do film bro, e minha ideia não é propor qualquer tipo de juízo de valor sobre eles. Arte é arte, e, com todas as brincadeiras à parte, nunca existirá algo objetiva e consensualmente “bom” ou “ruim”, mas deixo como sugestão de exercício interno refletir sobre nossa visão de quais filmes são mais levados a sério em termos de sua associação com gênero — e mesmo com raça, classe social, etc.
Depois de muito bater a cabeça sobre esse universo todo, de certa forma acabei voltando à estaca zero e concluindo que o que acontece na cinefilia é o mesmo que acontece em tantas outras esferas apossadas pela masculinidade: sem ter domínio especial algum sobre o tema, um homem pode se sentir plenamente à vontade para te alugar e palestrar indefinidamente sobre ele. Estrangeirismos à parte, o film bro é o palestrinha do cinema.
Comparei isso à minha própria experiência inicial no Cineclube: quando comecei a frequentá-lo, anos atrás, a simples ideia de trazer qualquer contribuição verbal na frente de todos era completamente assustadora. O que eu poderia acrescentar a um debate sobre cinema? Foram alguns meses e sessões até que eu me sentisse à vontade para expressar minhas opiniões.
Hoje, valorizo todo e cada comentário que pode ser feito depois de vermos um filme. Acho incrível como cada um mostra a si mesmo nas opiniões que emite sobre o filme nas sessões. Alguns ressaltam elementos da produção, como a fotografia ou a trilha sonora, outros trazem para a discussão os temas do enredo. O professor Alencastro, é claro, sempre traz anedotas históricas; a Isa sempre traz comentários sobre associações literárias; o Lucas sempre contribui com alguma história interessante sobre a produção ou sobre o diretor... Já eu tenho falado o que me vem à mente, até para estimular a participação de todo mundo na sessão, e rechaço a ideia de que falar sobre cinema é algo sério, denso ou difícil. Nessa mentalidade, quem sai ganhando sempre serão os grupos que mais se sentem intelectualmente validados na sociedade.
Convidamos vocês, especialmente as alunas, a virem às sessões do Cineclube. Prometo que há ecobags, mas não há esquerdomachos. E sei que comecei o texto rindo do amigo do Theo, mas o Cineclube é um ótimo lugar para conhecer pessoas novas, já formamos muitas amizades e até casais. Nunca se sabe...
Texto: Raquel Guimarães
Revisão: André Rhinow, Ana Carolina Clauss e Isabelle Moreira
Imagem de Capa: João Pedro Guimarães
Comments