Circulo de Giz é um sucesso! A peça feita pelos nossos alunos da GV tem um enredo que instiga a discussão entre todos e consegue conectar-se aos tempos atuais! A peça estará em cartaz até o final de Agosto, corra para assistir! Leia a crítica feita pela Gazeta! Agradecimentos especiais a Alice Gonçalves, pelas fotografias!
O Círculo de Giz da Companhia da Gaivota
Alice Rodrigues e Luiza Castelo
Quando se adentra o pequeno teatro onde a Companhia da Gaivota expõe sua peça, não há cortinas fechadas, coxias ou palco vazio. A plateia se depara com uma animada trupe de circo que debate vigorosamente sobre temas atuais, inconsciente da presença do público que entra para tomar seu lugar. São as personagens dessa pequena companhia de circo que se propõe a contar a história do Círculo de Giz, peça escrita pelo alemão Bertolt Brecht na década de 40, e que se mantém assustadoramente atual.
Nessa dinâmica de "peça dentro de uma peça", a Companhia foi capaz de trabalhar o texto clássico de maneira notável.“São duas estéticas" afirmou a produtora Maria Luiza, que participou da concepção artística da peça; "Não é a companhia da gaivota fazendo Brecht. É a companhia da gaivota apresentando seu circo que lhes apresenta Brecht. (...) Temos um desafio em manter a identidade do circo, que é uma das estéticas, sem perder todas as outras características que façam com que estejamos apresentando Brecht”.
O fato de as personagens se manterem nas fantasias de circo durante toda a peça lhes permite sair e entrar na narrativa brechtiana quando lhes convém, adicionando intervenções extremamente críticas que trabalham em conjunto com o texto original, dialogando com o autor e com a platéia. Por baixo das vestes coloridas e maquiagens brilhantes e espalhafatosas, estão análises do governo atual e suas decisões repressivas. A releitura muito bem arquitetada pelo diretor e lindamente executada pelos atores traz, de forma satírica, mensagens muito relevantes e preocupantes sobre a situação do futuro da Arte no país.
Os atores criam um ambiente atemporal e recheado de referências contemporâneas, dentro do qual recriam a narrativa brechtiana. “Nós desconstruimos uma boa parte do texto” explicou Bayard, diretor da Companhia e intérprete do pequeno Miguel. “Tivemos que criar elementos na peça para causar um certo estranhamento, para que houvesse o distanciamento do público e a crítica ficasse mais patente, de tal maneira que a plateia não se envolvesse emocionalmente com a peça, mas sim racionalmente”.
O enredo de Círculo de Giz gira em torno de Gruche Vaschnadze, criada de um governador assassinado durante um golpe dado por príncipes, sendo o nome do seu comandante, na ousada releitura proposta pela Companhia, o Príncipe “Biroliro”. Ao fugir dos invasores, a esposa do governador abandona seu bebê, Miguel, que é resgatado e criado a duras penas pela jovem Gruche. Dentro das discussões que cercam a personagem, o tema das opressões estruturais que sofrem as mulheres aparece com bastante destaque.
Enquanto espera seu noivo voltar da guerra, Gruche é uma mãe solteira em uma vila tradicional. “Acho que uma das coisas que vai dar para perceber (…) [são] as diversas questões relacionadas ao ser mulher, violências que elas sofrem diariamente que nem você para pra reparar, e só quando alguém fala você pensa que já viveu aquilo, ou que alguém que você conheceu viveu aquilo.” disse Gisele, atriz que dá vida à criada. O peso de ser mãe “solo” também é tratado com muita delicadeza pelo enredo. “[Percebemos] o quanto um filho significa, não necessariamente para a mulher pois acho que isso não é cargo apenas da mulher, mas da importância de ser responsável por outra vida, quando você escolhe ser responsável de alguma forma.” completa Gisele. Essa "responsabilidade" vem a se mostrar uma das chaves do enredo.
A narrativa também trata da complexidade da Justiça e o peso da desigualdade no sistema judiciário. Esses aspectos da peça são trabalhados no arco narrativo do beberrão juiz Azdak, que foi transformado em juiz pelo “povo” (representado, ironicamente, por três palhaços), em detrimento do sobrinho de Biroliro. O juiz, cujo único contato com a lei é o Vade Mecum em cima do qual se senta durante os julgamentos, faz “justiça” ao limpar a carteira dos ricos e distribuir aos habitantes mais pobres. Ao mesmo tempo em que aparece como uma espécie de "Robin Hood", Azdak representa uma corrupção do sistema judiciário e um desdém perante as leis. Muitas de suas atitudes são reprováveis, tanto juridicamente quanto de um ponto de vista moral, mas suas ações ao final da peça, nas quais não entraremos para evitar spoilers, restauram a Justiça àqueles que mais precisam.
Apesar do senso crítico e dos temas sensíveis trazidos durante a peça, ela em nenhum momento torna-se maçante. Pelo contrário, o humor refinado já presente no texto é brilhantemente explorado pela Companhia, que cria uma atmosfera leve e lúdica dentro da qual a narrativa se encaixa com perfeição. Os próprios palhaços transitam entre as personagens circenses e as Brechtianas com enorme facilidade, permitindo que uma dimensão permeie a outra. Os momentos cômicos atingem o resultado, gerando boas gargalhadas da plateia sem que isso em nenhum momento interfira com a seriedade do enredo.
A produção ainda conta uma trilha sonora escolhida a dedo, com músicas contemporâneas cantadas ao vivo pelo diretor musical, João Gabriel, e muitas vezes pelos próprios atores. "Todas as músicas estão diretamente interligadas com o enredo, com as questões e pautas da peça" explicou o diretor musical. "As músicas foram selecionadas em grupo: fizemos uma playlist colaborativa do elenco e depois eu fui inserindo o que eu achava adequado, o que conversava melhor com as cenas".
Para ele, a peça tem uma dramaturgia muito profunda, com diversos temas a serem debatidos. "Estamos colocando muitas pautas atuais" afirmou João Gabriel. "Estamos intercalando [a peça] com a nossa realidade, com a realidade social brasileira, global e humana. Nesse momento de crises, ideológicas e políticas, a peça diz muito".
O diretor tem uma perspectiva semelhante, e ao justificar a escolha da peça, Bayard afirmou que "o teatro tem que funcionar também como um grande ferramenta de questionamento e discussão, então nada melhor do que um texto extremamente provocador, como Brecht". Na mesma linha, Maria Luiza declarou que, para a Companhia, aquele "foi o momento em que começamos a entender muito fortemente a arte como ferramenta política, como meio político. A peça basicamente conta uma narrativa sobre violências (...) e talvez essa seja a Companhia da Gaivota colocando o dedo na ferida." Essas ideias caminham sempre em conjunto com o tema de amor e responsabilidade apontado por Gisele ao falar sobre sua personagem, e nessa nota, recomendo aos que assistirem a peça que prestem especial atenção ao último verso, que carrega em si grande sabedoria. O espectador sai do teatro com a mente carregada de questões, mas ao mesmo tempo com o espírito leve, embalado pela atmosfera lúdica e colorida dentro da qual a densidade da peça se encaixa.
Círculo de Giz fica em cartaz no Espaço Cultural A Próxima Companhia até o dia primeiro de setembro.
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