top of page

EU QUERO ACREDITAR: O ESTÁDIO COMO ESPAÇO DE FÉ



Por João Pedro Fernandes



“Não preciso 'acreditar' em Deus; eu sei que ele existe.” - Carl Jung



Na formação do Brasil contemporâneo, futebol e religião possivelmente são as forças sociais que mais unem e dividem os brasileiros. Essas duas instituições datam de marcos temporais muito claros - a religião, o cristianismo, com o início da colonização portuguesa no século XVI, e o futebol, com Charles Miller, no século XIX. Até hoje, constituem-se entre as principais forças do imaginário coletivo brasileiro, tanto em um sentido de formação da identidade nacional, quanto em suas disposições cotidianas, com as igrejas e os estádios se estabelecendo como espaços fundamentais da organização urbana brasileira.


Acervo de Custódio Coimbra


Como indicado anteriormente, a religião é anterior ao futebol. No Brasil, três séculos separam a primeira missa da primeira partida de futebol. Assim, é curioso observar a influência que os signos religiosos desenvolveram na concepção do futebol como fenômeno cultural, ao ponto de por vezes ser impossível discernir um fiel da bola de um fiel da cruz. Ambos partem de pilares comuns, como a matriz tanto do sentimento religioso, quanto do sentimento futebolístico daquele sentimento terem como elementos principais a fé e a identificação aos símbolos que compõem o corpo daquela religião ou daquele clube. O historiador Hilário Franco Júnior, em seu livro "A Dança dos Deuses: Futebol, Sociedade, Cultura", sintetiza bem: "(...) seus membros reúnem-se espontaneamente no templo (estádio), onde todos têm igual função religiosa (orar pela mesma divindade, isto é, torcer pelo mesmo clube) sem que isso negue as diferenças sociológicas entre eles (alguns vão ao estádio de automóvel e ficam nas numeradas, outros vão de ônibus e ficam nas arquibancadas).


Essa associação também se reflete no léxico futebolístico: jogadores são comparados a deuses (Diego Maradona, talvez o maior jogador argentino da história, foi divinamente apelidado de D10S - uma associação ao número 10 de sua camisa e a expressão "Dios", "Deus" em espanhol); estádios são chamados de catedrais e templos (como o Maracanã, conhecido como "O Templo do Futebol", ou o Estádio da Luz, do SL Benfica, apelidado pelos adeptos benfiquistas como "A Catedral"); as camisas dos times são o "manto sagrado"; jogadores que saem de um time e se transferem para o rival são chamados de "Judas" pelos torcedores, entre outros paralelos.


Essa incorporação de símbolos religiosos no futebol vai além dos fiéis e naturalmente permeia o ambiente futebolístico, com jogadores e equipes protagonizando histórias com componentes religiosos envolvidos. Especialmente em países católicos, os jogadores não fazem questão de esconder sua fé. Kaká, ex-meia da seleção brasileira e eleito melhor jogador do mundo em 2007, usou constantemente em sua carreira uma camisa por baixo do uniforme escrito "I Belong to Jesus" (Eu pertenço à Jesus). Outro caso interessante que demonstra a intersecção entre futebol e religião ocorreu em 1986, com a seleção argentina. Enquanto os jogadores faziam a preparação no povoado de Tilcara para a Copa do Mundo do mesmo ano, prometeram a padroeira local que, em caso de título argentino, voltariam ao povoado para agradecer. Há quem diga que a padroeira fez sua parte, já que a Argentina ganhou aquela Copa com contornos épicos, como o gol de mão feito por Maradona, a chamada La Mano de Dios (A Mão de Deus), nas quartas de final, contra a Inglaterra. Porém, os jogadores nunca cumpriram sua promessa e, desde então, a Argentina nunca mais ganhou uma Copa.


A fé da qual tanto falamos, porém, só se concretiza como sentimento amplo e irrestrito nos estádios. Estes, acima de tudo, servem para um clube ou uma seleção, e seus apoiadores, terem uma casa para chamar de sua, pertencendo efetivamente àquele espaço. Mais do que isso, é nos estádios que as grandes histórias são contadas e associadas imediatamente a eles, por serem o espaço físico onde os grandes enredos do esporte ocorrem. Ora, é impossível falar da derrota da seleção brasileira na final da Copa do Mundo de 1950, para o Uruguai, sem falar no Maracanã. O trauma coletivo daquele vice-campeonato foi tão significativo que até recebeu nome: "Maracanazo", com o estádio sendo expressamente identificado como local da tragédia.


Assim, estes espaços se tornam um lugar onde o torcedor conhece o céu e o inferno, os milagres e os santos, as vitórias e as derrotas. Essencialmente, um espaço mitológico, onde uma mitologia coletiva é historicamente formada e renovada. O torcedor do Santos viu no seu campo o time histórico de Pelé; o do São Paulo, o de Telê Santana; o do Flamengo, o de Zico; o do Cruzeiro, o de Dirceu Lopes, entre outros esquadrões do futebol brasileiro. Todos esses grandes craques e suas histórias épicas são eternizados e contados para as futuras gerações, que veneram seus deuses do passado por meio de cânticos, faixas e símbolos. Em relação a heróis e mitos de um passado quase remoto, ou seja, os mitos de criação do futebol brasileiro, existe uma tradição oral aí envolvida, na qual as gerações passadas contam para as mais novas os heróis de seu tempo, como Arthur Friedenreich, a primeira grande estrela do futebol amador, ou dos grandes jogos, como o do "gol mais bonito da carreira" de Pelé, contra o Juventus da Mooca, na rua Javari.


Ao mediar a relação entre o time e o torcedor, com estes virando um só corpo em dias de jogo (não à toa, as torcidas comumente se auto-referem como o "12º jogador"), o estádio vira um espaço de esperança. Os estresses da vida cotidiana são brevemente esquecidos e o torcedor embarca em uma jornada de devoção quase impotente, visto que não pode alterar o resultado do jogo, mas em que deposita todo seu apoio, direcionando-o aos jogadores, por meio de sua presença, de seu grito, de seu choro. Unidos por uma história comum, a torcida vai até o fim por seu time, fazendo valer suas juras de amor incondicional, tornando-se indívisivel um do outro: "Prometo estar contigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel em todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe."


Tamanho o peso espiritual de assistir a um jogo de futebol no estádio, não é de se estranhar que a experiência futebolística na pandemia seja, no mínimo, incompleta. Existem algumas mudanças óbvias que redimensionam o peso dessa prática: no lugar de estádios cheios pulsando com vida e emoção, gramados vazios, onde só se escuta sons de uma torcida falsa e o barulho que vem do banco de reservas. No lugar da jornada de ir ao estádio, que vai além dos 90 minutos, começando na ansiedade durante o dia que o torcedor sente com a partida, o pré-jogo, a chegada ao estádio, o jogo em si, os outros torcedores ali presentes e o resultado final, que pode ser tanto motivo de festa nos vagões do metrô, quanto de tristeza generalizada, temos um protocolo burocrático de assistir a esses jogos, que consiste em ligar a TV, mudar de canal no intervalo e desligar quando o jogo acaba.


Mesmo assim, a fé não se esvai com a ausência do público nos estádios. O espírito renovador do futebol transcende as quatro linhas e nos ajuda a lidar com o intenso desânimo que a pandemia causa. É belo observar como, mesmo sem os estádios para eternizarem esses feitos, times que não ganhavam títulos nacionais há muito tempo ganharam justamente em um ano de pandemia, com a esperança e o apoio de seus torcedores encontrando outras maneiras de alcançarem o clube e unificar em um só objetivo jogadores e torcida. É o caso de Sporting (Portugal), Inter de Milão (Itália), Lille (França), Rangers (Escócia), Colón (Argentina), entre outros. Em todos os casos, suas torcidas fanáticas infelizmente não puderam comemorar como desejado, mas de qualquer jeito, a glória é eterna e inesquecível.


Devido à sua complexidade, é impossível analisar o futebol a partir de uma só lente. Aqui, foram utilizados diversos pontos de análise a fim de tentar entender porque esse esporte mexe tanto com quem gosta dele. O porquê de sermos levados aos nossos limites por 22 jogadores chutando uma bola, o porquê da experiência de assistir a um jogo no estádio ser tão poderosa, e todos os outros questionamentos que o mistério eterno do esporte nos fará morrer sem as respostas. No fundo, não importa se você é brasileiro ou argentino, vê os jogos do seu time no estádio ou não, prefere esquemas defensivos ou ofensivos: estamos unidos por uma só paixão. Dizem que "Deus é quem te representa" - que sejam os deuses do futebol.



Revisão: Guilherme Caruso

Imagem de capa: Gustavo Carvalho

_____________________________

Referências:

1. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses: Futebol, Sociedade, Cultura. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 263-264. 433 p.

Comments


bottom of page