Tenho uma pergunta: isso aconteceu com você?
O ano é 2019. Você e seus amigos se remexem de entusiasmo nas cadeiras do cinema escuro, em suas mãos, baldes de pipoca desnecessariamente grandes e copos também gigantes, cheios até a boca de refrigerante. Um burburinho reverente corre entre vocês até que a telona se ilumina com trailers barulhentos e propagandas enfadonhas, e vocês se calam. É claro que não são estes que merecem o silêncio laudatório, e sim o que vem depois. Vingadores: Ultimato. A culminação épica da saga de filmes de super-heróis da Marvel cujos filmes você religiosamente assistiu, ávido para captar todas as informações e histórias que aquele universo cinematográfico poderia lhes proporcionar. Durante o filme, a plateia — e vocês também, lógico — grita e se emociona, principalmente na epopeica cena da batalha final, em que todos os personagens finalmente se reúnem contra Thanos, o grande vilão da saga. Vocês saem impressionados do cinema, tagarelando animosamente sobre o espetáculo que presenciaram e sobre o que está por vir nesse vasto universo.
E isso aqui?
O ano é 2022. Você se mexe um pouco para se acomodar melhor na cama, seu dedo deslizando pela tela do celular, descobrindo todas as inutilidades que a timeline do seu Twitter pode oferecer. Você se deixa soltar um murmúrio displicente ao descobrir que a nova fase do universo da Marvel foi revelada na Comic-Con. Aparentemente, é a sexta? Sei lá, você não se importa tanto. Mesmo assim, decide dar uma olhada e procura a lista de produções que virão. O anúncio de um novo filme dos Guardiões da Galáxia é até atrativo, os filmes deles eram bem divertidos, mas o que chama atenção — e não das mais positivas — são séries como Echo (quem?), Agatha (a senhora que bateu um papo com você no metrô outro dia?) e Ironfist (acho que ele estava naquele desenho animado do Homem-Aranha, talvez), entre outros. O que também salta aos olhos não é o fato de serem personagens desconhecidos ou menores, mas a sua quantidade e a sua imensa indiferença diante dessa avalanche de entretenimento insípido.
Bom, os dois casos aconteceram comigo. E acredito que o mesmo tem acontecido com mais pessoas, quem sabe até com você, leitor. Estamos entre amigos aqui, podemos falar a verdade: a magia da Marvel acabou quase por inteiro e se tornou uma linha de produção industrial de filmes e séries cinzas e insossas. Um dos sintomas mais escrachados da adoção desse modelo é o filme Eternos, de 2021, um filme que eu, sendo bem sincero, havia esquecido por completo até começar a digitar esse parágrafo. O longa apressadamente introduz uma equipe de personagens tão numerosa quanto bidimensional em uma narrativa genérica que, como muitas dessas produções, acaba em uma luta vazia em um cenário de CGI e que te faz sentir tantas emoções quanto observar a tinta de uma parede recém-pintada secar. No cômputo geral das coisas, é uma bomba de morfina de efeitos especiais aplicada para preparar você para consumir o próximo produto do universo cinematográfico.
Já que estamos falando de efeitos especiais, é importante mencionar como toda essa produtividade da Marvel vem a um custo muito maior do que filmes e séries esquecíveis. A empresa se tornou o verdadeiro terror de artistas de efeitos visuais, acumulando queixas de sobrecarregamento e superexploração desse trabalho criativo. No cenário atual, a combinação entre a quantidade de produções cinematográficas e a dimensão da Marvel na indústria faz com que ela se torne um cliente dificilmente recusável para estúdios de VFX que desejem manter suas portas abertas. Acontece que a gigante abusa dessa mão de ferro que mantém sobre o mercado, ao demandar mudanças bruscas e extensas em cenas e atos inteiros de seus filmes — até um mês antes de seu lançamento — e ao oferecer orçamentos cada vez mais baixos a esses trabalhadores[1]. Relatos desses artistas pintam uma paisagem de desacato que inclui semanas com 80 horas de trabalho, ataques de ansiedade e crises rotineiras[2] que inevitavelmente se traduzem em trabalhos corridos e malfeitos. E o horizonte não guarda novas esperanças, ao passo que a linha de produção promete continuar, com 15 produções prometidas para os próximos 3 anos.
Essa enxurrada de filmes e séries serve para alimentar o universo cinematográfico compartilhado da Marvel, que formalmente introduziu e popularizou esse lucrativo modelo de produção de entretenimento. Mesmo que essa ideia tenha de fato sido cativante por um tempo — o que procurei demonstrar na primeira parte deste texto —, a empresa parece ter esquecido que, passada a emoção da novidade, ainda é necessário que haja histórias interessantes povoadas por personagens aprofundados que conquistem e envolvam o público em alguma medida. Cada vez mais, essas produções se escoram umas nas outras, para construir o mínimo de sentido, o que é verificável no recente Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), filme cujo entendimento é prejudicado caso o espectador não tenha assistido a série WandaVision (2021). Caso esse tenha sido seu caso, você encontrou um cenário confuso onde uma antiga heroína se torna a vilã —- sem grandes explicações —, uma transição patrocinada por um grimório maligno do qual você nunca ouviu falar. A solução? Assinar o Disney+ e assistir aos 9 episódios da série, que equivalem a 5 horas e 50 minutos de conteúdo. Simples.
Admito que esse texto soa amargo, mas é óbvio que a estratégia industrial da Marvel já não passa mais de um modelo puramente comercial de venda que poderia ser o equivalente cinematográfico de fast-food. Ser obrigado a assistir uma miríade de séries para começar a entender uma história sendo tecida, em um filme que não passa de uma tática para que se consuma mais e mais conteúdo de uma companhia pertencente a Disney, uma gigante da indústria do entretenimento que tem 6 de seus filmes figurando entre as 10 maiores arrecadações da história — cada um tendo abocanhado mais de um bilhão de dólares nas bilheterias.
É claro que tudo isso é só minha opinião – afinal, esse é um texto de opinião – e que você é livre para continuar assistindo e gostando das produções da Marvel. Essencialmente, isso tudo é a minha perspectiva pessoal do estado atual desse universo cinematográfico. E, sinceramente? Eu mesmo irei ver o novo Guardiões da Galáxia quando sair no cinema. Mas não se preocupe. Caso eu não entenda algo, correrei aqui para criticar novamente.
Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim
Revisão: Arthur Santili e Beatriz Nassar
Foto de capa: Patrick Harbron/Netflix. Reprodução: CNET
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Referências:
1: BISSET, Jennifer. Marvel's VFX Artists Are Suffering -- and Starting to Speak Out. CNET, 2022. Disponível em: https://www.cnet.com/culture/entertainment/marvels-vfx-artists-are-suffering-now-theyre-speaking-out/. Acesso em 17 de Setembro de 2022.
2: SMITH, David. ‘Bullying is a problem’: visual effects artists speak out against Marvel. The Guardian, 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2022/aug/03/marvel-disney-visual-effects-artists-speak-out. Acesso em 17 de Setembro de 2022.
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