
Introdução
Com o advento da pandemia, houve uma transição de diversas atividades presenciais para o ambiente online. Dentre as consequências dessa mudança, encontra-se o aumento da produtividade tóxica, que ocorre quando alguém fica tão preocupado em ser produtivo que acaba por negligenciar outros aspectos de sua vida, podendo ocasionar em malefícios para sua própria saúde física e mental. Esse problema já existia antes da pandemia, porém, foi agravado por ela. Difundiu-se a ideia, geralmente errônea, de que, pelas pessoas estarem em home office, teriam mais tempo “livre” e que poderiam usar esse tempo para aumentar sua produtividade. No entanto, esse pensamento não leva em conta todos os custos físicos e psíquicos de só se pensar em produzir e não conseguir ter tempo para o lazer e descanso.
Em decorrência da preocupação de como esse problema poderia estar afetando os alunos da FGV, na terça-feira passada (08/09), o Centro Acadêmico da Escola de Direito e o Diretório Acadêmico organizaram um evento para discutir a relação entre pandemia e produtividade tóxica, especialmente no contexto universitário. O evento faz parte de uma série de outras palestras relacionadas ao Setembro Amarelo, promovidas pelo CA e pelo DA.
As palestrantes convidadas foram Camille Gaviolli, psicanalista responsável pelo pró-saúde mulher, e Lorraine Carvalho Silva, pesquisadora do Comitê de Diversidade da EDESP. Estavam presentes representantes do CA e do DA, que ajudaram a mediar o evento e Tiago Corbisier Matheus, outro representante do pró-saúde.
O pró-saúde é um programa que busca assegurar o bem-estar do aluno durante sua formação, atuando em duas frentes: a primeira no âmbito coletivo, buscando “apoiar e participar de ações conjuntas com entidades estudantis ou serviços da Fundação em favor do diálogo sobre temas de conflito para seus membros”; a segunda consiste em atendimentos psicológicos individuais e sigilosos a alunos. Solicitado esse serviço, o estudante terá direito a, geralmente, seis encontros com profissionais de fora da FGV. Após o fim dessas sessões, se o aluno desejar dar prosseguimento ao tratamento será encaminhado a outro profissional.
O Comitê de Diversidade, por sua vez, foi fundado em 2017 e é uma instância consultiva sem caráter sancionatório ligada à coordenação da EDESP. Ele trabalha com a escuta e a proposição de medidas alternativas para casos envolvendo estudantes, e com sugestões para o encaminhamento de demandas do alunato, que podem ou não ser acatadas pela instituição. O intuito é promover a diversidade, o pluralismo e a tolerância na faculdade. Qualquer professor, aluno, funcionário, prestador de serviços, estagiário e pesquisador pode acionar o Comitê.
O evento
O evento foi dividido em dois momentos, em um primeiro as convidadas puderam realizar uma fala sobre a pandemia e a produtividade tóxica e, em seguida, foram feitas perguntas que alunos haviam enviado por um google forms, disponibilizado pela organização do evento.
Exposição - Lorraine Carvalho Silva
A primeira a falar foi Lorraine, que focou sua exposição em uma pesquisa feita em maio pelo Comitê de Diversidade, que mapeou questões relacionadas ao impacto da pandemia na saúde mental dos alunos da EDESP. Para a formulação do questionário, foi usada como base um estudo de saúde mental feito pela USP em 2017 e, durante a elaboração do forms, o Comitê manteve contato com profissionais de saúde mental para assegurar que nenhuma pergunta fosse um potencial gatilho. Houve um total de 197 respostas.
O formulário foi baseado em 4 eixos: o perfil dos respondentes; o impacto da pandemia e da transição para o virtual nas famílias e na percepção dos alunos quanto às aulas e à carga de estudo; mapeamento da saúde mental dos discentes; visão dos estudantes de determinados recursos institucionais e a quem recorrem para falar sobre saúde mental.
O perfil majoritário dos respondentes foi de mulheres, brancas, heterossexuais, cisgêneras e que estavam na graduação. Lorraine ressaltou a falta de diversidade de identidade de gênero na faculdade, com quase a totalidade dos respondentes se considerando cisgêneros.
Já sobre como a pandemia afetou as famílias, 76,7% dos alunos falaram que tinham expectativa de queda da renda familiar, cerca de 40% desses falaram que esperavam que a diminuição fosse muito significativa. Aqui, a convidada ressaltou a preocupação do Comitê com os bolsistas, tanto que essa instância entrou em contato com os representantes desse grupo de alunos na EDESP para entender se teria algo que poderia ser feito para ajudá-los. Outro ponto delicado foi que se constatou que uma parcela significativa dos respondentes morava com alguém que está no grupo de risco da COVID-19.
A representante do Comitê explicou que essas preocupações com renda e bem-estar de familiares e amigos se somaram a preocupações inerentes a um curso de graduação e pós-graduação, levando o estudante a se sentir sobrecarregado. Junta-se aqui o problema da produtividade tóxica. Alunos relataram que sentem que, no atual formato de ensino, têm mais tempo livre. A questão é que a depender de como esse tempo “extra” é usado, ele pode se tornar tóxico, uma vez que o estudante passa a dedicar um tempo excessivo aos estudos, perdendo-se os momentos de lazer e descanso. De fato, 76% dos estudantes consideraram a carga de estudos excessiva ou muito alta, 61% disseram que o tempo de dedicação ao curso aumentou e 70% sentem que a qualidade dos estudos piorou.
Em continuação, a maior parte dos alunos afirmou que a pandemia afetou negativamente sua saúde mental. Com isso em vista, o Comitê, em julho, promoveu a abertura de espaços de diálogo para os alunos e funcionários. Algumas atividades incluíram sessões de meditação e rodas de conversa.
Em relação a quem os alunos recorrem para tratar questões de saúde mental, constatou-se que buscam, primeiramente, outros estudantes; em segundo lugar professores; e, em terceiro, coletivos e/ou centros acadêmicos. A palestrante explicou que o Comitê buscou pensar na criação de mais espaços abertos para a troca entre alunos e ressaltou a atuação de alguns professores como pontos de apoio para grupos de alunos.
Já quanto aos recursos institucionais, 82,8% dos alunos acham que não houve apoio à saúde mental por parte da faculdade. Dos 3,2% de alunos que solicitaram o auxílio da FGV, 54% consideraram reduzido o apoio recebido. Dentre as razões que levaram os alunos a não solicitarem o apoio da faculdade, se encontram o fato do estudante já fazer acompanhamento fora, a ausência de visão da FGV como um ambiente que se preocupa com saúde mental e a falta de conhecimento dos meios pelos quais poderia pedir ajuda. Nesse sentido, o Comitê pensou em estratégias para divulgar melhor os espaços de diálogo e auxílio à saúde mental já existentes na faculdade.
Lorraine finalizou encorajando os alunos a procurarem o Comitê de Diversidade para levarem eventuais demandas e casos.
Exposição - Camille Gaviolli
Camille começou falando sobre como a experiência dos alunos com o ensino virtual tem sido muito diversa e subjetiva: alguns não se adaptaram bem, outros são indiferentes e há aqueles que até o preferem.
Em sequência, ela trouxe a ideia de que a pessoa que está trabalhando ou estudando em home-office pode, mesmo estando em sua residência, não se sentir mais em casa, pois aquele espaço reservado e separado das obrigações profissionais e educacionais não existe mais. Segundo a convidada, no contexto atual, a divisão do tempo entre trabalho/estudo e lazer fica a cargo de cada um. Com isso, as pessoas podem, em nome da produtividade, acabar retirando de suas rotinas os momentos de lazer, essenciais para a manutenção da saúde física e psíquica.
Se antes era uma escolha utilizar o meio online para construir e fortalecer relacionamentos, em contexto de pandemia, ele se tornou a única via de contato. Assim, as pessoas passam quase todo seu tempo com algum aparelho eletrônico, tanto para trabalho/estudo quanto para lazer e socialização. Isso faz com que haja uma dificuldade muito grande de se desconectar, podendo gerar uma dependência de aparelhos eletrônicos.
Além disso, a palestrante trouxe que o online traz a sensação de que tudo é acessível, criando-se uma cultura de sempre se tentar fazer mais e ser mais “produtivo”, perdendo-se de vista a importância e necessidade de, às vezes, fazer menos. Ela relembrou que o ser humano não é uma máquina e que aqueles que tentam fazer de mais acabam pagando por esse excesso com sua saúde física e mental. Alguns problemas podem incluir sono irregular, falta de apetite ou apetite descontrolado e eventuais alterações de peso. Mesmo sofrendo de um ou mais desses problemas, a pessoa ainda fica com a sensação de que não está fazendo o suficiente, surgindo, assim, a produtividade tóxica.
Camille também ressaltou que muitos sentem, nesse período, uma sensação de desamparo e solidão, mas que como esse sofrimento é processado e se manifesta é algo subjetivo e que a superação desse estado de mal-estar deve vir tanto do individual quanto do coletivo, daí a importância de necessidade de espaços de diálogo e troca.
Por último, a palestrante relembrou que o pró-saúde busca promover a abertura de um diálogo, que nesse evento foi feito no âmbito coletivo, porém que, para os alunos que quiserem, pode ser feito individualmente.
Perguntas
Lorraine recebeu duas perguntas, a primeira sobre ações que ela e o Comitê achavam ideais para mudar a percepção de que a FGV não se preocupa com a saúde mental dos alunos. Em sua resposta, revelou que o Comitê está buscando criar um canal de diálogo entre os recursos já existentes na instituição que lidam com questões de saúde mental para a promoção de ações conjuntas. Além disso, ressaltou a importância de ouvir os representantes discentes para que as ações do Comitê sejam pautadas pelas demandas do alunato.
A segunda pergunta era como lidar, no momento atual, com a introspecção, tendo em vista que o acesso a um atendimento psicológico está mais difícil devido à quarentena. Lorraine afirmou que para se ter acesso aos mecanismos de assistência psicológica e de conversa era necessário passar mais tempo na frente do computador, o que poderia não ser benéfico para todos. Ela reconheceu que a sociabilidade é importante, mas que não poderia ser onerosa, ou seja, se a pessoa se sente mais confortável sendo introspectiva, ela se obrigar a socializar, conversar com alguém ou até atender um evento poderia ter mais efeitos adversos do que positivos. Ainda assim, relembrou que para alguns os meios digitais podem ajudá-los a se sentirem acolhidos e perceber que outros estão passando por dificuldades similares. Ela também trouxe que, caso seja uma demanda dos alunos, o Comitê poderia continuar realizando a promoção de espaços de diálogo e troca.
Camille também respondeu duas perguntas, a primeira indagava sobre como desconstruir a ideia de que, durante a quarentena, as pessoas têm de estar sendo produtivas o tempo todo. Na resposta, ela ressaltou a importância de cada um ter um lugar e tempo para si mesmo, novamente trazendo a ideia da criação e fortalecimento de fronteiras entre o estudo e o lazer. Também foi explicado que essa desconstrução não é um processo simples, relembrando que a ideia de que há mais tempo livre no contexto atual é falsa, devendo a pessoa tentar sempre lembrar que ela não precisa e nem deve estar sendo produtiva o tempo todo.
Por último, a segunda pergunta feita à Camille era sobre como ajudar um amigo que se encontra em uma situação delicada sem expô-lo nem piorar a situação. A representante do pró-saúde falou que precisaria de mais detalhes de qual exatamente seria a situação da pessoa citada na pergunta para que ela pudesse tratar a questão com o devido cuidado, mas disse que se disponibilizar para conversar é sempre algo importante e pode ser uma estratégia de acolhimento e ajuda.
Contatos:
Pró-saúde: tiago.matheus@fgv.br e pro.saude.mulher@fgv.br (caso deseje-se que o contato seja com uma mulher)
Para saber mais: https://eaesp.fgv.br/aluno/pro-saude-gv
Comitê de Diversidade: diversidade.direitosp@fgv.br
Mais informações: disponível no intranet da EDESP
Foto da capa: Elena Malyshevskaya
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