
Às 3 da manhã, quando me evitava o sono, eram violetas. Arroxeados sacos de pele abaixo de meus olhos denunciavam minha insônia para os papéis de parede desbotados da decoração. A lua nova refletia um filete de luz que me despertava o ódio. Linda e radiante, era ela uma razão a mais pela qual meu sono não vinha. Me atraíam as vontades. A garota que ontem cedo me sorriu, o carro que, por meses, eu namorava, o emprego tal e o tal quarto para o qual eu deveria me mudar em algumas semanas. Por isso era de plástico, a violeta. Porque só ela, no negrume da noite que me arrastava consigo para evitar a solidão, me convenceria a dormir. Porque, dormindo, não haveria o que desejar, se já não mais eu saberia o que procuro.
Na alvorada, margaridas. Como as famosas pétalas brancas que envolvem seu núcleo amarelado, fez-se manhã. No céu nublado, em cujo ponto livre no céu o sol opaco se acanhava, vi a flor. Me levantei, e o movimento despertou uma pontada de dor atrás de meus olhos. Fitei os móveis de madeira de demolição e me vi, como a cômoda, rearranjado numa manhã que já se repetira mil vezes, depois de desintegrar-me no dia anterior, que existiria apenas em minha memória, tal como tudo no passado, e que me puniria até o fim dos dias, sem motivo bom. A margarida exibia uma delicadeza ficta, como uma ideia plantada no horizonte quando eu sei não poder voar, ou como um adesivo pregado na abóbada celeste quando ao relento, tento a sublimação, qual seja, me libertar da forma física para buscar a leveza, a baixa densidade. Por isso era de plástico, como tudo em minha vida.
O rapaz desesperado suplicava pela atenção de sua namorada, a puxando pelo braço. Minha imaginação me empurrou uma orquídea como referência. “Lindas as orquídeas, a abraçarem o carvalho para viverem seu epifitismo, para nutrir-se de luz enquanto o sol as acaricia”. Quase esqueci, por um segundo, do assédio moralizado que me acostumei a assistir dia sim, dia não. Quase vi epifitismo no parasita em minha frente. “Será ela a orquídea?”, considerei. Por que razão haveria ela de ser a orquídea? Ele aprendera muito cedo que as mulheres são delicadas, cheirosas, sutis e agradáveis. Que são lindas, que nos acalmam a ira, que aliviam as feridas e nos põem no chão. Dei risada. O epifitismo acontece de forma que uma planta se fixa a outra por suporte, como a orquídea ao carvalho. Mas essa orquídea precisa de proteção, de afirmação, de referência. Precisa extrair, retirar, perfurar. O homem olhou para mim e, sem graça, a deixou ir. A mulher era o carvalho.
Sem dizer palavra, ela me disse muitas coisas. Era bico-de-papagaio. Olhou para mim por cima dos meus olhos, sem conseguir atravessar as paredes que revestem minha armadura. Me convidou, com um sorriso, a sorrir também. Suas pupilas não dilatavam quaisquer sentimentos do âmago de seu peito. Não poderiam ser sem que eu os percebesse. Ela encostou a bochecha em meu peito, e senti seu sorriso se desfazer. Chorei. Por que as coisas bonitas me fazem chorar quando eu sei que são mentiras? A flor era de plástico, porque o papagaio apenas imitava um som alheio quando ela disse que me amava, como a se gabar por isso. O amarelo inconfundível do androceu era uma farsa, porque as palavras por ela ditas eram a dublagem barata de um roteiro pronto que ela ouvira mil vezes em outras ocasiões. Depois de uma tarde longa, carnal e sem cor, me despedi.
A nova noite era uma rosa. Delicioso seu aroma, e eu a consumia, porquanto entornava meus goles garganta adentro e pescava, um a um, os molhos de chave para as verdades em meu coração. Quando senti-me florescer, espinhos. Saíam como rajadas, como o arrastar de mão contra um toco de madeira velha com farpas expostas, sob a pressão que as empurram carne adentro no deslize. Acho que não aguentamos as verdades das quais fugimos religiosamente e, verdade seja dita, os entorpecentes não nos podem privar de qualquer delas, mas atraem-nas à superfície, como um anzol. Fingem-nas interessantes e compartilháveis, mas acho que ninguém é capaz de compartilhar o que aprendeu a ver com seus próprios olhos. Está para vir quem me convença de que meu vermelho e o seu são o mesmo vermelho, que minha rosa e a sua são a mesma rosa. Era de plástico. Vomitei, de repente, as verdades que havia engolido, e apaguei-me no balcão. Nele, vi as farpas que eu jurava terem perfurado-me as mãos.
No mundo de Morfeu, a colina desviava, para o topo, os ventos que jorravam na encosta. Adiante, o pano verde se estendia pela região, com ocasionais manchas coloridas onde houvesse flores de todos os espectros, formas, cheiros e texturas. Projetados no chão de terra úmida e rica, graciosos contornos de nuvens esparsas delineados contra o sol. Uma mecha de meu cabelo remexeu com o sopro, e me vi sorrindo como uma criança. Razão alguma havia para sofrer e, no entanto, eu sofria por trás dos panos, mesmo nu. A cidade abaixo de mim era a matéria. As árvores em volta, a forma. Lindos campos de margarida me imbuíam de esperança. Despertei no clarear do quarto, as lascas do velho papel de parede a me descascar a lucidez, e novamente, me vi no plástico.
Me debrucei sobre o parapeito da sacada com uma xícara de café. Sentindo o calor do sol no rosto, me vi numa guerra civil entre as intangíveis delícias do momento, e tudo quanto é informação passada ou potencial futuro. Preocupado e ansioso demais, lutei para me ver de fato no parapeito, para sair do mundo de Alice de minha cabeça, tão bem elaborado e tão muito continuado. Era como jogar-me para baixo na divisa entre dois rios, sem o menor controle de onde cair, estando então à mercê do vento que eu tentava, inutilmente, domar, ou convencer. Suspirei de aflição em um momento em que eu poderia, fosse outra vida, outro contexto, outra cabeça, outra história, ter paz. Chorei.
Chorei por mais tempo do que poderia discernir. Na deságua de meu peito, lágrimas escorriam como afluentes de uma alma retalhada pelas lâminas da fragilidade. Me atirei no metal que me impedia a inércia, e gritei por socorro para o mundo de bonecos abaixo de mim. Os soluços me doíam o peito, minhas tosses espancavam-me como porretes de dentro para fora, e nada além da curiosidade fez os rostos das pessoas virarem para mim, procurando a matéria de uma discussão por vir. Me detive por um instante, e o mundo seguiu como se eu fosse nada mais do que uma ideia. Atordoado eu contemplei, naquele momento, a mais pura realidade. Tornando-me para a sacada em que me encontrava, um reluzir me atraiu para o tímido jarro na esquina interior do piso. Sorrindo como o mais lindo dia que já sonhei viver, estava um lírio azul saudável a nascer em meio ao lodo.
Autoria: Rodrigo Ferreira
Revisão: Enrico Recco e Anna Cecília
Imagem de Capa: Fotografia por Rodrigo Ferreira
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