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FOME: O VÍRUS QUE TENTA CONTAMINAR O BRASIL NOVAMENTE



Fica cada vez mais claro o quanto a pandemia do Covid-19, além de haver desencadeado uma crise global, trouxe consigo muitas outras questões – não encontrei um adjetivo mais expressivo - medonhas à nossa atenção. Os impactos se deram em praticamente todas as instâncias da vida nacional de todos os países. Não foi, e ainda não é, um problema restrito ao âmbito da saúde pública, pois iniciou uma avalanche de dilemas que continuam a desafiar as autoridades governamentais, bem como a sociedade civil. No Brasil, a crise econômica é clara, a situação precária da educação também, e a irresponsabilidade do atual governo derivada de uma completa incapacidade de administrar o país nem se fala. No entanto, um problema que me parece ter fugido um pouco da atenção geral, é o da fome. O desemprego está em alta e as políticas de distanciamento, por mais necessárias que sejam para o momento, desorganizam completamente as atividades de inúmeros trabalhadores, bem como a distribuição de merendas escolares, uma fonte de alimento de extrema importância para algumas famílias que sobrevivem com pouca renda. Assim, a falta de recursos para sustentar um dos direitos humanos mais básicos, a alimentação, voltou a ser um problema no mundo, e no Brasil também.

Enormes avanços no combate à fome reconhecidos internacionalmente foram realizados no começo do século XXI no Brasil. Com os diversos programas desenhados pelos governos FHC e Lula, o país conseguiu reduzir bastante o número de pessoas em situação de desnutrição, de forma que foi retirado do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014. A situação se deteriorou com os efeitos da crise econômica de 2015/2016. No período entre 2017-2019, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada foi de 43,1 milhões. Houve um claro aumento em relação aos 37,5 milhões entre 2014 e 2016 - sendo esses números retirados de uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)[1].

Com a dificuldade de colher dados como o da fome na situação atual de pandemia, os números, não só para o Brasil, mas para o mundo, sobre o impacto desta na falta de acesso à alimentação adequada ainda não foram completamente estruturados. Contudo, um estudo do começo de 2020, também da FAO, projetou que a crise do Coronavírus poderia aumentar entre 83 e 132 milhões de pessoas em estado de subnutrição em todo o mundo, sendo as regiões mais afetadas a Ásia, África e América do Sul [2]. Além disso, em um trabalho conjunto entre o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) sobre os impactos da Covid-19 na vida de crianças e adolescentes brasileiros, 21% dos entrevistados (totalizando 33 milhões de pessoas) afirmaram que, desde o começo da pandemia, houve momentos em que o alimento disponível em casa acabou e a família não tinha dinheiro para repô-lo [3].

Se os dados ainda não confirmam diretamente a necessidade de preocupação com a questão da fome, tendo em vista as consequências da crise pandêmica, é possível compreender seu impacto. A taxa de desocupação no Brasil aumentou de 11, no último trimestre de 2019, para 13.9 nos meses finais de 2020, tendo um pico de 14.6 no meio do ano (o maior desde 2012) de acordo com o IBGE [4]. Com a assustadora quantidade de pessoas desempregadas, pode-se compreender a infeliz situação na qual se encontram diversas famílias brasileiras, sem renda o suficiente para sustentar a própria alimentação em meio a um cenário desestabilizado e economicamente imprevisível. Iniciativas particulares ou do Terceiro Setor de distribuição de alimentos foram imprescindíveis para combater esse cenário. A ONG “Ação da Cidadania” está na linha de frente do combate à fome no Brasil há 27 anos e, desde que começou a crise da Covid-19, já distribuiu mais de 230 mil cestas básicas para a população que sofre com a falta de recursos [5].

Um outro problema no tema da nutrição que tem raízes no COVID-19 se deu com o fechamento das escolas: com os filhos sem acesso à merenda, muitas famílias tiveram que se reorganizar, pois passaram a se preocupar com uma refeição a mais no orçamento. Como resposta a essa realidade, algumas medidas foram tomadas pelos governos locais e pelo Federal também. A Lei nº 13.987, promulgada em abril de 2020, aprovou a destinação de recursos federais para a compra e fornecimento de cestas de alimentação básica aos alunos da rede pública durante a pandemia através do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Esse programa, com origem na década de 40 e coordenado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), hoje serve como regulador do repasse pelo governo federal aos estados, municípios e escolas federais de quantias suficientes para cobrir os 200 dias de ano letivo. Ele se mostrou de extrema importância para a distribuição de alimentos durante a pandemia e, também, como auxílio econômico à agricultura familiar de diversas regiões, dado que, desde 2009, 30% dos recursos do programa devem ser destinados à compra de produtos dessa origem [6].

Como a lei não apresenta um caráter mandatório, muitos municípios optaram por outros tipos de amparo, incluindo aí a distribuição de cartões ou vales para as famílias que se enquadrarem em um perfil determinado. No Rio de Janeiro, os vales foram definidos em R$100 reais por aluno pertencente a uma unidade familiar que estivesse dentro das definições de “extrema pobreza”, sendo o fornecimento realizado através do Bolsa Família [7]. Uma questão a se pensar, entretanto, é que a crise econômica pegou todos de surpresa, de forma que muitas famílias que antes não se encaixavam no perfil requerido pelo programa perderam sua principal fonte de renda com a onda de demissões, passando, de repente, a se encaixar, mas sem a possibilidade de solicitarem o recurso rapidamente.

A alimentação adequada é um direito previsto pelo artigo 6º da Constituição Federal. É a mais básica das necessidades de um ser humano e ninguém sobrevive sem ela. Em uma situação como a atual, na qual enfrentamos uma crise atrás da outra, esse direito não pode ser esquecido. O Brasil ganhou renome no mundo com as suas políticas públicas de combate à fome e realmente atingiu patamares excelentes de acessibilidade à alimentação. Contudo, em uma onda de desemprego, inflação (a qual só voltou a cair agora em 2021) e na iminência de uma possível segunda onda de “lockdowns”, a fome não pode ser colocada de lado. As iniciativas do Terceiro Setor são de extrema importância, mas o Governo Federal também precisa se posicionar melhor quanto a essa questão e promover políticas que estruturem o combate à fome na vida nacional, independente de existir ou não uma crise paralela. A fome não pode constituir mais uma pandemia no Brasil. Disso já temos demais.



Revisão: Letícia Fagundes

Imagem de capa: @gente.prabrilhar


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Referências:

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