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GOL NÃO TEM GÊNERO, "FUTEBOL" PARECE TER


Por Loreta Guerra


“Em uma disputa mano a mano entre Marta e Neymar, quem você acha que ganha?” Eu não faço ideia do que responderia se me fizessem essa pergunta. A verdade é que eu talvez replicasse com outra pergunta: “Ganharia no que?” Para julgar habilidades de futebol, eu ou qualquer outra pessoa que não trabalhe com o esporte com certeza não temos a mínima capacidade. Já em termos de remuneração, salário e, mais importante, prestígio, aí sim, temos uma grande discussão à frente.


Podemos até tentar comparar atributos físicos, movimentos, tática, tudo baseado em um achismo de espectador. Sinceramente, creio que mesmo os profissionais teriam dificuldade para dar uma resposta absoluta de “ela ou ele é superior no futebol”. No final das contas, essa comparação é supérflua e, mais ainda, inútil. Boa parte dos esportes são separados entre times femininos e masculinos por um claro motivo, são jogos diferentes. Veja bem, diferentes. Não piores ou melhores exatamente por não serem rivais. Tentar opor as habilidades de homens e mulheres é um exercício sem resposta, por mais que muitos por aí façam declarações ignorantemente convictas de que “futebol feminino nem é futebol.” Essa frase está errada do começo ao fim. É produto de uma cultura machista que não promove qualquer tipo de “distinção natural” entre homens e mulheres, mas, sim, limita cegamente as capacidades de cada gênero com base em um ideal ultrapassado. Joga fora qualquer evolução que tivemos no debate público, nos últimos tempos, a respeito de como definir papéis sociais a partir dos órgãos sexuais do indivíduo é um comportamento primitivo, uma ofensa às capacidades racionais do ser humano.


É claro que, por mais estúpida que seja essa opinião, ela tem repercussões intensas na vida das jogadoras. Uma publicação da Organização das Nações Unidas de 2019 indicou que o salário anual mais bônus de um grande jogador de futebol (Lionel Messi) era de aproximadamente 84 milhões de dólares, enquanto a soma dos salários das 7 melhores jogadoras do mundo era de US$42.6 milhões. Para analisar o porquê dessa diferença, precisamos fazer uma distinção entre os conceitos de oferta e de demanda. A “oferta de futebol” nomearia a disposição das jogadoras e jogadores a se profissionalizar no esporte, vendendo suas habilidades aos clubes e, no consumo final, aos espectadores. A demanda, por sua vez, seria determinada por quem consome o futebol, escolhendo a quantidade que deseja “comprar” e quanto pretende pagar por ela.


A distinção salarial entre jogadoras e jogadores de futebol é consequência tanto do lado da demanda quanto do da oferta, já que a falta da primeira cria condições profundamente desfavoráveis para o desenvolvimento da segunda. A baixa demanda pelo futebol feminino é derivada de uma cultura que endeusa as habilidades físicas do sexo masculino. Não é que existem grupos diferentes que preferem um, outro ou os dois, a maior parte do público que “gosta de futebol” na verdade gosta de assistir a homens jogando futebol, não do esporte em si. Essa “preferência” culturalmente determinada, contudo, tem o poder de estabelecer todos os recursos que serão repassados ao investimento nos jogadores, atraindo mais patrocínio e estimulando uma oferta cada vez mais especializada e requintada. Já no caso do futebol feminino ocorre o contrário: a falta de demanda restringe os recursos e, portanto, os investimentos nas jogadoras, o que cria um ambiente hostil à sua evolução e à entrada de novas “ofertantes”, fomentando um ciclo vicioso. Além disso, o preconceito contra as mulheres jogadoras, derivado de uma imagem idealizada da mulher como sensível e dócil que rechaça o valor da “feminilidade” em mulheres que não seguem os padrões, afeta diretamente a oferta, impedindo que muitas se fortaleçam ou mesmo entrem no esporte. Dessa forma, apesar de se tratar da mesma modalidade, o futebol feminino e o masculino são produtos distintos com demandas e ofertas diferentes balizadas por uma cultura predominantemente machista.


Quando digo que uma boa parte das pessoas que se denominam “amantes de futebol” na realidade não gostam do esporte em si, mas de assistir ao sexo que está jogando, há uma lógica bem simples por trás. Como já afirmei, as modalidades femininas e masculinas são sim diferentes, mas se alguém declarar que essa diferença justifica uma discrepância tão grande na atenção que é dada aos jogos e, mais ainda, na remuneração completamente díspar entre homens e mulheres, está tentando enganar os outros ou a si mesmo. Diversos esportes que separam as categorias por gênero não apresentam tal desigualdade salarial. No tênis, por exemplo, os quatro principais torneios (“grand slans”) pagam o mesmo prêmio, apesar de ser uma conquista recente e de outras competições ainda contarem com distâncias expressivas na remuneração. Novamente, caímos no fato de que a cultura machista explica diretamente uma parte da falta de prestígio dada ao futebol feminino e também indiretamente, ao isolá-lo da atenção geral, intensificando impedimentos para conseguir recursos e, com eles, evoluir.


Um bom exemplo dessa conjuntura é a dificuldade experienciada pelos clubes e competições femininas em vender e manter contratos de direitos televisivos com grandes emissoras. O Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino enfrentou muitos obstáculos desde 2018, quando não houve a renovação do patrocínio pela Caixa Econômica Federal. Em 2019, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) realizou diversos acordos com plataformas de transmissão, incluindo o Twitter, e a própria Band passou a transmitir partidas na TV aberta. O ano de 2020 foi um marco importante, pois pela primeira vez na história todas as partidas do campeonato foram transmitidas ao vivo, inclusive pela ESPN na TV fechada. Não é à toa que o campeonato bateu vários recordes de visibilidade, e a audiência quase triplicou. A transmissão dos jogos, contudo, não representa uma fonte de lucro tão grande para os times brasileiros femininos quanto para os masculinos, dado que alguns contratos são gratuitos e ainda existem segmentos inexplorados pelos campeonatos (como o “paperview”).


No final das contas, o que o futebol feminino precisa para chegar ao seu máximo desenvolvimento é de valorização. Podemos ficar anos tentando separar as habilidades táticas de jogadoras e jogadores, almejando comparações sem sentido entre modalidades que nem competem entre si e perdendo completamente nosso tempo… Ou podemos investir em uma educação física menos segregada entre os gêneros e no fim da cultura machista que só cimenta barreiras. Podemos também parar de falar “eu gosto de futebol” e só assistir aos campeonatos masculinos, pois isso é simplesmente uma hipocrisia. A única forma de observarmos algo pelo menos próximo da igualdade, quiçá num futuro não tão distante, é removendo os bloqueios sociais e econômicos que se impuseram e ainda se impõem ao futebol feminino, quebrando o ciclo vicioso de falta de investimento e de prestígio à modalidade.


Seria um golaço.



Revisão: Bruna Ballestero e Julia Rodrigues

Imagem de capa: Isabella Martins

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