GOSTO NÃO SE DISCUTE... SERÁ MESMO?
- Nicolas Floriano
- 28 de abr.
- 4 min de leitura

Ele era legal, bonito e até conhecia a Lorde — o que já é um bom começo! Mas quando ele abriu a boca… eu soube que não ia funcionar. Você conseguiria ignorar os gostos pessoais de alguém, mesmo quando tem química? E quando não tem? Isso é tão importante assim ou estamos nos levando a sério demais?
Pode parecer um dilema bobo, mas em um mundo onde tudo — da retrospectiva do Spotify ao feed do Instagram — virou identidade, será que o gosto ainda é só gosto? Antigamente (ou idealmente), “gosto” era algo mais pessoal, íntimo, quase irrelevante — “eu gosto disso, você gosta daquilo, tudo bem”. Mas hoje, num cenário em que o que você escuta, lê, veste, posta e consome serve para definir quem você é, o gosto deixou de ser neutro. Ele virou uma espécie de identidade social performática.
O seu Letterboxd não é só sobre cinema — é uma vitrine. Dizer que ama a Taylor Swift não é somente sobre música — é sobre qual tribo estética você quer pertencer. A curadoria virou persona. E isso não se limita ao que ouvimos ou assistimos; até escolhas aparentemente banais, como a roupa que vestimos ou os cafés que frequentamos, são tomadas como posicionamentos claros sobre quem somos ou pretendemos ser. Pense naquelas pessoas que cuidadosamente montam seu feed no Instagram com uma estética perfeita, onde até a foto do brunch precisa comunicar algo específico sobre sua identidade visual e conceitual.
Então volto ao questionamento principal: dá para se conectar com alguém cujos gostos são completamente diferentes dos seus, se esses gostos representam quem a pessoa é ou, no mínimo, quem ela quer parecer ser? Pense em um primeiro encontro em que você menciona que gosta do Luca Guadagnino, e a outra pessoa responde algo como “ele não é aquele cara que faz vídeos no TikTok?”. A questão não é somente se a outra pessoa entende sua referência, mas se você está disposto a aceitar a ideia de ser percebido ao lado de alguém que não entende ou não valoriza o mesmo universo cultural que você.
E é aí que a coisa complica: quando o gosto vira uma espécie de cartão de visitas moral e social, estar com alguém de “gosto duvidoso” parece mais do que uma diferença — parece uma ameaça à narrativa cuidadosamente construída sobre quem você é. É como se o parceiro ideal tivesse que corresponder não somente aos nossos desejos afetivos, mas também à lista interminável de critérios culturais, estéticos e sociais que criamos. Um parceiro não é apenas um companheiro, ele é também um reflexo da nossa própria situação cultural.
Talvez por isso o Tinder se pareça cada vez menos com um aplicativo de encontros e cada vez mais com um catálogo de estéticas. Ninguém mais quer somente saber se você gosta de cinema — querem saber quais diretores você ama, quais filmes você deu nota 5 no Letterboxd, e se você realmente entendeu Aftersun ou só fingiu. As descrições de perfil são micro-manifestos: “livros que mudaram minha vida”, “emoji no perfil é red flag”, “Taylor Swift maior que The Beatles”. O date começa muito antes da conversa e, muitas vezes, termina nela. Cada deslize ou comentário duvidoso pode custar caro na economia afetiva contemporânea.
Porque, no fundo, o que está em jogo não é só o gosto — é a compatibilidade de mundo que ele sugere. É difícil flertar com alguém que gosta daquele artista que você acha genérico. Que posta reels motivacionais com uma música clássica de trilha sonora. Que te chama para ver Ainda Estou Aqui e depois diz que o Walter Salles é “meio comunista”. O problema nunca é o filme — é o subtexto. E o subtexto, muitas vezes, é o medo silencioso de se conectar a algo que não condiz com a sua própria narrativa de quem você deseja ser. A compatibilidade estética virou pré-requisito, quase tão importante quanto gostar realmente da pessoa.
E aí surge o dilema: até que ponto conseguimos nos desconectar da nossa persona curada para simplesmente gostar de alguém? Até que ponto conseguimos ser genuínos em um cenário onde cada escolha parece gritar algo sobre quem somos? Existe espaço para autenticidade quando até nossas preferências mais banais se tornam atos públicos de autoafirmação?
Os critérios ficaram cada vez mais específicos, quase caricatos. Tem gente que evita quem usa emoji demais, outros fogem de quem posta selfies tomando café com frases motivacionais. E, nesse teatro social, o outro precisa ser esteticamente compatível — para que a narrativa que você construiu sobre si não desmorone. Nos tornamos juízes cruéis e impiedosos das pequenas escolhas alheias, sempre atentos ao menor sinal de incompatibilidade.
Talvez o ponto central seja justamente esse: o gosto virou linguagem. E, se tudo comunica, tudo pode ser mal interpretado. O medo não é ouvir um disco ruim no carro ou assistir a um filme questionável: é de estar ao lado de alguém que está dizendo ao mundo algo com o qual você não quer ser associado. É sobre imagem, e imagem é poder. Então, o gosto do outro vira uma extensão da sua própria performance.
Mas, pensando bem, talvez haja uma libertação em reconhecer isso: se tudo é performance, então talvez possamos relaxar um pouco mais. Se o problema é que tudo virou símbolo, talvez a solução seja perceber que, no fundo, ninguém realmente está prestando tanta atenção assim. Talvez possamos dar uma chance ao que parece estranho ou brega, porque, no final das contas, é essa disposição de abdicar das próprias limitações que nos permite conexões reais. Talvez o verdadeiro desafio seja aceitar que nem todas as escolhas precisam ser coerentes com uma narrativa perfeitamente alinhada.
No fim, talvez todo mundo seja o “gosto duvidoso” de alguém. E talvez a verdadeira coragem não seja ter um gosto perfeito, mas sim bancar o seu — e aceitar o do outro sem se perder no processo. Se o problema é que tudo virou símbolo, talvez a solução esteja em aproveitar o som, mesmo que seja Roupa Nova. Porque, afinal, entre símbolos e personas, talvez o mais radical seja simplesmente ser autêntico, sem medo do julgamento alheio.
Autoria: Nicolas Floriano
Revisão: Giovana Rodrigues e André Rhinow
Imagem da capa: Pinterest
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