“Mas comigo a coisa é diferente. Eu não sou viril ao ponto de ver num outro homem apenas o macho rival. Pode ser que eu não seja viril sob aspecto algum, mas tenho certeza de não o ser daquele modo que eu, sem querer, chamei de “convencional”, não sei por quê.”
A Montanha Mágica (1924), Thomas Mann.
Acredita em sorte? Eu credito, mas talvez sejam os olhares que as vivências vão formando na cabeça. “Coincidência”. Talvez seja ela um vocábulo mais aceito pelos probabilísticos, em geral céticos, eles. Mas não escondo: devem ter sido poucas as vezes que uma opção de identidade editorial coincidiu tão bem com o tema que um testículo desejava abordar em meio a centenas de textos dos mais variados temas e qualidades presentes aqui neste site. Apesar de todo esse “frufru” estético a que aqui se atém, escolhendo cuidadosamente cada uma das palavras de forma a criar uma sonoridade minimamente aceitável para quem aqui escreve e (não sei!) para quem lê, não irei ficar enrolando para traduzir em miúdos o que essa maneira desorganizada de organizar as palavras tenta esconder em dizer, colocando seu conteúdo em tanta neblina poética…
Afinal!, de começo introdutório, de leitura vaga e despreocupada, mas solene: “HOMEM”. Um pouco dúbio ainda, cheguemos mais perto. H-; -O-; -M-; -E-; -M (homem ou Homem?). Ou então: h-; -o-; -m-; -e-; -m. Que diferença há? Mesmo investigando espaçadamente, pouca coisa parece se alterar. Digo, o som, ele mesmo, não se muda, não se transfigura, apesar de nós, e não o cosmo, sermos responsáveis, em grande medida, por emancipar suas possibilidades. A leitura, também, parece fluir tranquilamente, mesmo havendo hífens e pontos e vírgulas servindo de empecilho espaçante, agoniante. Tentemos de outra forma: H-; -o-; -m-; -e-; -m. Parece parecido, de aparência, mesmo que haja uma única letra em diferença. Se fosse uma imensidão de outras possíveis palavras, o significado de ambas as transcrições seria o mesmo, indicando apenas um nome próprio ou um vocativo. Entretanto, em matérias de masculinidade, elas adquirem sentidos amplamente divergentes. Ouso dizer: elas implicam uma dialética universal e formadora de toda a nossa cultura até o momento. Elas dizem respeito a bilhões de “homens” que vivem e viveram, pelo menos sob algum aspecto, no objetivo de serem “Homens”. Esta foi a teleologia que sustentou a existência dos homens até o presente momento.
Seria o sentido das coisas tão sensível assim? Um pequeno ajuste, provocado pelo teclamento e sustentação de um shift pelo mindinho esquerdo até que o “h” do teclado, finalmente, dê início à transcrição do “H” maiúsculo com o indicador direito, conferindo tênue, apesar de extremamente substancial, transformação? Mais um teste: “aga-ô-eme-ê-eme”. O som se deforma de modo batido, soletrando-se, mas me parece que as coisas, embora mais profundas e genealógicas, vão ficando cada vez menos cognoscíveis, e menos se tem a dizer sobre elas. Enfim, o que seria esse Homem que desejamos até aqui? Qual homem é o nosso Homem? Quantos HOMENS haveria? Basta! De que homem-Homem-HOMEM se fala!?!
A palavra “Homem” compartimenta muitos adjetivos. Heroico, grandioso, alto, virulento, violento, performático, feroz, corajoso, belicoso, fálico, forte, focado, enérgico, dotado, mulherengo, intenso, macho, vigoroso, guerreiro, robusto, feio, bruto, eficiente, soldado, decidido, canalha, atlético, sério, habilitado, duro, ousado, maciço, sedutor, chefe, rápido, íntegro, importante, galã, veemente, perito, ativo, inabalável, influente, potente, dono, insensível, valente, sagaz, parrudo, eficaz, perceptível, engraçado, marido, alto, trabalhador, vívido, viril... Cansei!! Darei três linhas de silêncio, desfazê-las em vazio. Darei tempo para a meditação, peço que vá tomar um copo d’água para retomar o fôlego. Vou, enquanto isso, fingir que você, leitor ansioso, irá realmente tomar esse tempo que estou lhe concedendo para que busque mais adjetivos que caibam dentro desta palavra, aparentemente, inofensiva.
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A palavra “homem”, toda minusculizada (coitada!), por outro lado, comporta apenas dois sentidos: sexo masculino ou humanidade.
Essas muitas qualidades que o vocábulo “Homem” pode ter são insuficientes, uma a uma, para demarcar e colorir exatamente o que ele representa. Por meio desse processo de ir regando a mente com palavrinhas, consegue-se um panorama — vai delimitando as bordas dessa complexidade maior, encontrando os sentidos desejados a fim de que eles se tornem visíveis em uma paisagem. Entretanto, como se pode perceber, essa imagem pictórica é muito grande, transbordando os limites de nosso campo de visão e discernimento. Com isso, obtêm-se adjetivos e sentidos que mutuamente se excluem, quando comparados isoladamente. Isso poderia dar a entender, se nos atermos a uma comparação restrita a uma pequena porção de vocábulos, que as ideias são contraditórias ou até paradoxais. Contudo, elas são partes e peças fundamentais de todo esse sistema operante, não sendo possível enxergar a mesma imagem, caso optemos pela retirada de algumas. A questão é que estaríamos nos restringindo ao significado isolado de cada uma delas, procurando harmonia em lugar que não há. O que há é o caos! Um caos chamado “Homem”, que foi coletivamente agregando em si múltiplas ideias e termos conforme convinha a ele. Em determinadas circunstâncias, é bom ser belo; em outros, a feiura também pode absorver uma qualidade positiva e favorável. Certamente, o adjetivo deve convergir com nossos fins. “Delicado” e “sensível”, por exemplo, não se sustentam de forma alguma. Não se admite heresias desse tipo neste campo, e disso tenho absoluta certeza. Essas palavras mais “fracas” têm perseguido, em geral, o Segundo Sexo. Admito: essa coisa toda é bem frágil, apesar de bem elaborada.
Mas esse aparato todo se sustenta em que? Bem, talvez a questão seja mais simples. Reformulando: que graça haveria em ser um simples “homem”? Creio que quase todos haveriam de concordar que nenhuma. Apenas uma extremidade? Nenhum de nós quer ser multidão — um vulto cinza que passa despercebido —, queremos, de fato, é ser a espada que guia uma legião de seguidores hipnotizados pela inveja de nunca conseguirem ter atingido o objetivo final: tornar-se “Homem”, ou seja, líder da alcateia social. Ser “Homem” é a razão que nos fez e nos moldou até aqui. É preciso. É preciso muito. É preciso muito ser. Ser. Sei lá: nós, renegados a sermos “homens”? Que tristeza… Jamais! O medo traz o movimento. Homens, sejamos “Homem”! “Homem”? Não deveria ser “Homens”, para concordar com o verbo? Sob essa perspectiva, sim. Entretanto, adianto que apenas um de nós será “Homem”. Não há espaço para mais um, é uma luta demasiado laboriosa. Ser “Homem” implica um devir solitário. Se há mais de um no pico, então não há pico. Se o dia tivesse 23h, aparenta-se que pouco mudaria. No entanto, tanto menos seria o tempo total que teríamos em nossas vidas para atingirmos o estágio de “Homem”. Nesse sentido, não sei se Deus nos abençoou com dias mais longos ou se ele nos condenou a sermos medíocres, obrigados a lidar com o limite e a finitude temporal, os quais talvez nos condenem a sermos “homens” para todo o sempre. Há chance… Há expectativa… Há espera… (Isso acaba?).
Em retrospectiva, redefinamos os termos a partir de outras luzes. “Heroico, mas bem de vez em quando; grandioso, porém desconsiderando outras; alto, mas desengonçado; performático, mas nas horas vagas um pouco despreocupado; feroz, embora só com algumas coisas; corajoso, mas apenas sob a certeza da admiração; belicoso, e bem inconveniente!; fálico, apesar de não assumir muita coisa; forte, só que até certo ponto; focado, mas topando com tudo na quina da cama; enérgico, bêbado de tanto energético; dotado, e se achando superior por isso; mulherengo, mesmo reprimindo desejos por outros homens…”
Pois, acabamos de perceber: isso tudo aqui não passa de uma competição bastante irracional e automatizada. Se bem que se trata de uma concorrência situada no cerne de muitas relações, pois não há Norte mais incentivado pela cultura do que o de se tornar “Homem”. Homem é todo esse acumulado de heranças. É um desejo reforçado em todos os cantos. Super-heróis, campos de futebol inteiros, artistas famosos, empreendedores de sucesso, influencers ostentando seus corpos e estilos de vida, atores pornô em plena performance aos 50 anos, marcas de uísque, jogadores de sinuca, caminhonetes 4x4 e muitos outros. Todos cantando: “Seja Homem.” “Seja esse acumulado de símbolos e significados.” “Seja isso, e será reconhecido, será finalmente amado.” Que tipo de empoderamento cheio de submissões e mandos seria esse? Ser-Homem carrega muitas insuficiências e angústias. Talvez, valha mais a pena tomar partido de uma guerra que permita que o verbo “ser” seja intransitivo. Talvez, o melhor a se fazer seja apenas “ser”, sem obrigatoriedade de qualquer complemento posterior.
Na minha visão, o título desta coluna deveria contar com apenas a inicial do segundo “HOMEM” em maiúsculo. O emprego da caixa alta na primeira aparição de “HOMEM”, por outro lado, gera uma ambiguidade de interpretações um tanto complicada. Entendam-me, foi difícil sair deste impasse. Se eu cumprisse com a norma padrão da língua portuguesa e escrevesse o primeiro “HOMEM” como “homem”, eu estaria cometendo um terrível erro gramatical, que me obrigaria a começar um título com a inicial em maiúsculo, mesmo que eu fosse fiel ao significado que pretendo atribuir à palavra. Temos um impasse aqui: a norma é incapaz de bancar o desejo do escritor de expressar sua ideia. Assim, serei obrigado a transgredi-la, mas não se ofenda, leitor. Bem sei que muito do que você costuma ler se atém e se sujeita a ela. Quanta norma! Pare com isso, deixe de ser cafona! Aqui farei diferente, pois este texto é meu e, apesar de haver certa complexidade nele e em suas ideias, nem por isso ele é um texto formal. É puramente coloquial — a essa altura da redação, já não mais me preocupo com iniciais em maiúsculo. Se pesquisei três vezes em alguma fonte, foi muito. Ademais (ou além disso), sei que poucos o lerão. Em dias que o público está entediado e ávido por um assunto polêmico, favorecido por uma imagem e título de publicação igualmente polêmicos, talvez ele alcance no máximo cem pessoas. Entretanto, não me preocuparei (tanto) com isso. Logo, não se desespere com essa pequena transgressão, apesar de eu compreender que toda grande revolução começa no convencimento de pequenos grupos, apesar de eu saber que este texto pode ser considerado transgressor em muitos sentidos. De qualquer forma, o título que eu gostaria de ter dado para o meu texto é “homens, talvez não somos Homens”. Se tivessem inventado uma forma mais enxuta e maleável de homem, eu teria poupado você de todas essas linhas.
Por fim, fica aqui meu resumo: “Todos os homens são homeros. Quase todos os homens são homeros. Nem todos os homens são homeros. Uma fatia dos homens não são homeros. Uma boa quantia de homens não são homeros. Metade dos homens são homeros. A maioria dos homens não são homeros. Alguns homens são homeros. Possivelmente há homens homeros. Um punhado de homens é homero. Poucos homens são homeros. Talvez existam homens homeros. Nenhum homem é homero.”
Autoria: Gabriel Linares Fernandes;
Revisão: Bruna Ballestero, Guilherme Caruso & Beatriz Nassar; Imagem de capa: Dicionário Informal.
Prezado Gabriel Linares !
Você realmente foi incrível neste texto, permeou todos os papéis que os HOMENS/Homens/homens, são submetidos a séculos.
Na Grécia antiga, principalmente em Atenas, iniciou-se essa discussão, que foi interrompida pela dominação romana do mundo antigo, e depois com todo o conservadorismo imposto pela alienação que a Igreja despejou e obrigou a sociedade cumprir.
Grande abraço, você faz parte de um grupo seleto de jovens que, com certeza, ajudarão a transformar nosso mundo em algo melhor e com Homens de verdade!
Ulisses
20/07/2022