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INCLUSÃO DESCUIDADA


O editor chefe da Gazeta, Victor Coutinho, escreve sobre o recente acontecimento da nossa Fundação Getulio Vargas nas mesinhas de doce do DA e trabalha com a polêmica que o Facebook revelou: Roubos são resultado de uma inclusão descuidada?




Há poucos dias, um post no grupo “FGV Sem Censura” chamou muita atenção: nele, uma garota desabafava sobre sua rotina dura, dizendo que fazia doces para vender na famosa mesinha de doces da EAESP e que dependia do dinheiro obtido para manter-se na graduação. O absurdo: tinham lhe roubado mais de 68 reais em três dias, seja pegando o dinheiro do seu pote, seja comendo doces sem pagar: não se sabe exatamente, já que em tal mesa não há qualquer supervisão. Quando tomei conhecimento do caso, a polêmica já tinha mudado de figura: meus amigos só falavam de um certo comentário, digamos, insensível e preconceituoso – os adjetivos não fazem jus à gravidade daquelas palavras, mas a norma culta exige esse comedimento – pelo qual algum membro do grupo (nem mesmo era aluno da Fundação) apontava como a culpa para o ocorrido deveria ser da “inclusão descuidada” que a FGV supostamente tem feito, já que, nas palavras do comentarista, “o furto provavelmente não fora cometido por alguém da elite”.


Vi das mais diversas reações. Muitos bolsistas ficaram chocados. Outros, justificadamente, com muita raiva ou então simplesmente tristes com a situação. Afinal, que mentalidade sórdida era essa, tão monstruosamente desabrochada em algumas frases? Digo, não era um preconceito velado, uma insinuação. Estava ali, nua e crua, a afirmação de que os bolsistas da Fundação eram um erro, um descuido. Passado o susto, de cabeça mais fria, avalio que é preciso olhar para esse pensamento, essa mentalidade nociva que, muito provavelmente, está nas cabeças de muitas outras pessoas dentro e fora da GV. Não, o indivíduo não importa. Na verdade, ele vale menos do que as poucas linhas que lhe dediquei neste texto. O que realmente me preocupa são as ideias ali expressas, naquele curto comentário.


Seria mera ignorância, no sentido puro da palavra? Se sim, então talvez as pessoas devessem saber que um bolsista da Fundação Getulio Vargas, na verdade, não está recebendo caridade, muito menos um privilégio sobre as outras pessoas. Na verdade, ele foi aprovado num processo seletivo assim como todos os outros alunos, competindo sem qualquer diferenciação com quem teve uma educação de ponta – ainda que muito provavelmente tenha saído de contextos marginalizados e periféricos, já que sequer existem cotas na FGV. Esses bolsistas são alguns poucos que conseguiram quebrar um ciclo de pobreza, talvez por terem tido a oportunidade de estudar num colégio particular com bolsa, talvez porque trabalharam para pagar seu próprio ano de cursinho, talvez por um sacrifício financeiro dos seus pais, que investiram tudo o que tinham na sua educação... Ao chegar na faculdade, aprovados no vestibular tal qual todos os seus colegas, ainda tiveram de competir entre si pelas escassas bolsas e, não raro, endividar-se por um longo período no futuro para financiar sua própria graduação.


O que quero provar com isso tudo? Apenas que não é qualquer um que consegue ser bolsista nessa faculdade. Existe um processo seletivo já excludente o bastante para cortar muita gente. Existe, depois, um procedimento para conseguir uma bolsa, que provavelmente vai deixar gente necessitada de fora. Existem, depois disso ainda, 5 anos de uma rotina intensa, com todos os gastos que permeiam a vida universitária, de batalhas para manter as notas no mesmo padrão (ou até num padrão mais alto) que seu colega pagante, mesmo enfrentando um rio de dificuldades financeiras que ele não enfrenta. Parece absurdo sugerir que o programa da GV para bolsistas é descuidado. Não é como se a instituição não soubesse de tudo isso e não conhecesse exatamente o perfil de quem ela coloca para dentro de seus cursos. Ela conhece – e certamente prefere que seja assim –, pois os poucos que passarem por todos esses filtros estarão mais próximos do aluno que a Fundação quer ter. Seria isso descuido?


Acredito que seria ingenuidade minha, contudo, acreditar que se trata apenas de ignorância. O que mais pode ser, então? Puro preconceito. É a expressão mais direta e desavergonhada de um pensamento elitista, que não quer ver a pobreza e a diversidade povoando os corredores de suas escolas. A mera sugestão de que a elite não possa roubar é tão descabidamente incongruente que custo a acreditar somente na ignorância como explicação para esse fenômeno. De repente, esquece-se de que o país acabou de passar por um caos eleitoral e agora tem um presidente eleito, em parte, pela euforia em torno do combate à corrupção. Quem são os políticos corruptos, se a classe política é composta largamente pela elite do país? E se esse exemplo parece longe demais do caso em questão, torno ao ponto da incongruência: os “incluídos”, acusados do roubo, são os mesmos que precisam vender doces para se manter. Mais que isso, sou capaz de apostar como quem pega um doce daquela mesa sem pagar o faz crente de que “não faz falta”, justamente por ter dinheiro o suficiente para ser incapaz de compreender o quanto aquilo vale para quem produz.


Esse triste episódio serviu para demonstrar algumas coisas. Por um lado, a total insensibilidade e o desrespeito de quem rouba os vendedores daquela mesa e, por outro, o quanto ainda há de resistência à inclusão social dentro de ambientes elitistas. É também um lembrete de quanto trabalho há pela frente, e de que a situação dos bolsistas não está, de forma alguma, consolidada e pacificada no ideário de muita gente. Acho plausível que, para alguns, o mero desconhecimento possa ensejar o tipo de pensamento aqui descrito e, nesses casos, espero sinceramente que este texto possa abrir alguns olhos. Aos demais, tenho apenas a dizer que, gostem ou não, a inclusão acontecerá.


Elite, esse espaço deixou de ser só seu, e não voltará a ser.

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