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“INVERNO EM SOKCHO” E OS LIVROS SEM HISTÓRIA




Desde que me entendo por gente, a leitura esteve presente na minha vida. Ela era uma constante no meio de tantas variáveis, o que não significa que ela sempre permaneceu a mesma. Conforme o tempo passava, fui percebendo que, dependendo da fase na qual eu me encontrava na vida, a leitura exercia uma função diferente, permanecendo a mesma em essência, mas não em forma. Quando era criança e passava horas na biblioteca do colégio lendo diversos livros sentada em mesas que, aos meus olhos, eram grandes demais, e a leitura era uma aventura. Era a forma pela qual eu desbravava novos mundos e diferentes culturas, tudo isso enquanto ainda usava um singelo uniforme escolar e precisava pedir permissão para sequer usar o banheiro. Não lia em busca de conhecimento ou por obrigação, lia porque gostava, porque me soava divertido. Lia porque sonhava. 



Foi lá pelos meus 15 anos quando decidi para mim mesma que já era a hora de eu desenvolver qualquer traço de personalidade que fosse. Que eu comecei a ler, não necessariamente em busca de conhecimento, mas sim de uma certa autoafirmação. Lia livros de filosofia, clássicos escritos há séculos e calhamaços com mais de 800 páginas, e me recusava a chegar perto de qualquer coisa que estivesse na seção de “recomendados” das livrarias. A leitura era então uma ferramenta de autoconhecimento. Agora, ao invés de desbravar mundos tão distantes, buscava navegar por mim mesma, em busca de respostas e certezas que, para ser honesta, até hoje não encontrei. 



As coisas mudaram um pouco logo depois de eu entrar na faculdade. A carga de leituras obrigatórias para as aulas eram imensas e, quando não estava lendo por obrigação, estava lendo em busca de algum refúgio. A leitura, quando feita por mera escolha pessoal, se tornou então uma ferramenta de escapismo, algo que me permitia descansar a mente depois de uma sequência de dias extremamente cansativos. A leitura era então uma forma de autocuidado, sendo às vezes o único pilar que sustentava meu ser ainda no lugar. 



Foi bem nessa fase que passei a me interessar majoritariamente por aquilo que passei a chamar de “livros sem história”. Esses eram livros nos quais, no quesito de narrativa e ação, não acontecia praticamente nada. Não havia clímax, nem grandes reviravoltas, e muito menos uma lição de moral por trás das palavras escritas no decorrer das páginas. Eram simplesmente centenas de páginas do mais simples e puro nada… Nada mesmo. Por falta de narrativa, as páginas eram normalmente repletas por descrições de paisagens, observações pontuais a respeito de objetos e personagens, e, principalmente, vários devaneios e pensamentos de algum eu lírico, que eram usualmente interrumpidos por diálogos breves que, por si só, não agregavam lá muita coisa na trama. 



De certa forma, era reconfortante ler esse tipo de livro. Saber que, pelo menos durante aquelas horas que passaria lendo, não teria que lidar com grandes emoções, passar por altos e baixos e nem me envolver em grandes reviravoltas, me deixava tranquila. Me encontrava então em um estado de estagnação e imobilidade contínua, o que, apesar de parecer estranho, era muito pacífico. Foi indo atrás disso que eu encontrei um livro pequenininho em uma livraria perto da faculdade que chamou minha atenção. A capa era linda e não havia sinopse, o que me prometia exatamente aquilo que eu procurava. 



O livro se chamava “Inverno em Sokcho” da Elisa Shua Dusapin, uma escritora franco-coreana que nasceu em 1992 na cidade de Sarlat-la-Canéda, na França. O livro narra então a vida monótona de uma garota, também franco-coreana, que trabalha em uma pequena pensão na cidade de Sokcho, na Coreia do Sul. A cidade é conhecida por estar localizada perto da fronteira do país com a Coreia do Norte, o que acaba atraindo diversos turistas durante a alta temporada. Entretanto, no resto do ano a cidade permanece vazia, quase que imóvel no tempo, repleta de pequenos acontecimentos monótonos. 



Nesse contexto, a protagonista então não tem muito com o que ocupar o seu dia, fazendo com que a narrativa seja então cheia de descrições de mudanças de paisagens, de pequenas descrições dos residentes da cidade e do caráter estacionário e repetitivo de sua rotina – características que faziam com que o livro, na teoria (leia a “nota da autora” no final do texto), se encaixasse perfeitamente na minha classificação de “livro sem história”. Aqui vale ressaltar que a escrita da autora é fascinante. As frases são curtas e pouco detalhadas, o que ajuda na construção da atmosfera pouco dinâmica e pausada do livro. Mesmo assim, as palavras são capazes de evocar até mesmo sensações físicas nos leitores, como os dedos congelando com o frio do inverno, a condensação das respirações sobre o vidro, e principalmente, a impressão de estar completamente parado no tempo.



As coisas mudam um pouco quando um cartunista francês, chamado de Yan Kerrand, chega na cidade e se instala na pequena pensão, em busca de um cenário diferente para sua nova história em quadrinhos. O mais interessante aqui é acompanhar então a ligação da protagonista, e um certo fascínio dela com a chegada do novo hóspede, em contraste com o caráter enfadonho e ordinário que se mantém em sua rotina durante todo o livro. Conforme os dois personagens interagem, há também uma grande mistura de idiomas, com diálogos e palavras em coreano, francês e inglês, fazendo com que essa multiplicação de cenários e personagens se traduza numa espécie de conexão polifônica, dando uma certa originalidade ao livro. 



A narrativa se desdobra aos poucos, explorando a dinâmica entre Kerrand e a narradora. Da mesma maneira que o francês busca inspiração através daquela cidade desconhecida, a narradora, que acaba se transformando em uma espécie de guia turística, busca entender a sua própria origem pelos relatos ocidentais contados pelo turista. O livro acaba então quase da mesma forma que começou, introspectivo e monótono, deixando o futuro em aberto, mas com uma certa certeza de que a rotina da cidade, que se mescla com o dia a dia da protagonista, permanecerá a mesma, nem que seja, pelo menos, até o fim do inverno. 



Nota da Autora: 


Aqui vale um adendo: Escolhi trazer esse livro aqui por um motivo. Se você planeja ler o livro, ou já leu, fique esperto. Apesar de eu ter deixado claro várias vezes durante esse texto de que não acontece nada no livro, é possível que, na verdade, a trama trate de um possível mistério que termine em uma tentativa de assassinato. Eu, pessoalmente, não consegui dizer com certeza, mas, caso isso seja verdade, talvez prove que livros sem história não existem de fato. Eles seriam então apenas livros que possuem suas histórias escondidas pelos próprios autores, o que, apesar de quebrar o argumento que eu construí aqui, daria um outro texto inteiro, que provavelmente seria muito mais interessante que esse… 




Autoria: Victorya Pimentel

Revisão: Laura Freitas e André Rhinow

Imagem de capa: Capa do Livro: “O Inverno em Sokcho”

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