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JOÃO 8:32




La Vérité sortant du puits armée de son martinet pour châtier l'humanité (A Verdade saindo do poço armada de seu chicote para castigar a humanidade), de Jean-Léon Gérôme. 1896.




Um dia, a Verdade e a Mentira se encontraram. A Mentira, então, disse:


- Está um dia bonito, não é mesmo?


A Verdade, desconfiada, olhou ao seu redor. Vendo o céu claro e limpo e sentindo uma brisa suave e agradável soprando em sua pele, percebeu que aquele realmente era um belo dia. Andaram juntas por algum tempo, até que chegaram a um poço repleto de água. A Mentira aproximou-se dele e, após experimentar a água, disse:


- A água está incrível! Por que não tomamos um banho?


Novamente desconfiada, a Verdade experimentou a água e percebeu que a Mentira não mentiu, aceitando o convite. Ambas começaram a se despir, preparando-se para se banhar. A Verdade foi a primeira a mergulhar no poço, enquanto a mentira a seguia para entrar logo depois. No entanto, furtiva e rasteira, a Mentira roubou as roupas da outra, as vestiu e saiu correndo.

Percebendo o que havia acontecido, a Verdade saiu apressada na direção da Mentira, gritando para as pessoas ao redor o que havia acontecido, pedindo ajuda para recuperar suas vestes, mas ninguém a dava ouvidos. Pelo contrário, as pessoas a repudiavam e olhavam com olhares de julgamento e reprovação por sua nudez. Constrangida, a Verdade voltou para o poço, escondeu-se lá e nunca mais saiu.

Dizem que, desde então, a Mentira corre pelo mundo vestindo-se com a aparência da Verdade.


Em minhas pesquisas encontrei muitas informações e versões distintas dessa história¹, mas ao transcrevê-la, tentei me manter fiel aos elementos comuns à maioria das que li. O único fato que me pareceu consensual foi o de que ela é a inspiração para o quadro que ocupa a capa deste texto, de Jean-Léon Gérôme, pintado em 1896. Este, aliás, foi o que me motivou a escrever esse texto. Nele, Gérôme retrata não uma verdade tímida ou envergonhada, mas sim, vingativa. O próprio título do quadro nos diz que a figura que sai do poço é a Verdade, que armada de seu chicote prepara-se para castigar a humanidade pelo desprezo e repulsa com que foi recebida.

Ao ler até aqui você pode estar se perguntando onde, afinal, eu quero chegar (além de parecer uma daquelas histórias contadas pela Ana Maria Braga às 9h da manhã). A resposta é simples: pretendo relacionar essa obra com alguns aspectos do nosso contexto atual.

Mas, antes disso, preciso fazer uma ressalva: é fato que Verdade ou Mentira são conceitos amplamente explorados nas mais diversas áreas do conhecimento humano e há discussões sobre, até mesmo, se é possível conhecer uma verdade ou mentira absoluta. No entanto, o que eu pretendo discutir aqui é a Verdade e a Mentira dentro de parâmetros efetivamente observáveis, me afastando de discussões filosóficas e epistemológicas e focando em um objeto concreto específico: o atual Governo Brasileiro - mais especificamente falando, nosso presidente.

Bolsonaro teve como um de seus principais lemas durante (e após) a campanha presidencial um famoso versículo da Bíblia Cristã: ‘e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertarᔲ. No entanto, parece que nosso Chefe de Estado se atrapalha (como sempre) com o que entende por verdade. Seu modus operandi, difundido por todos os órgãos da Administração Federal, é simples: realiza-se uma fala, anuncia-se uma medida ou veicula-se uma propaganda que, logo em seguida, pode-se esperar algum recuo ou afirmação de que o ato atacado nunca existiu³.

A lista de ocasiões em que isso ocorreu é grande e as situações, muitas vezes, absurdas, mas quero destacar aqui uma situação específica, envolvendo a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Esta, em meados de março, veiculou a campanha “O Brasil não pode parar”, que combatia a necessidade de medidas de isolamento social defendidas por órgãos e especialistas da área da saúde em todo o mundo.

A peça publicitária não durou muito: foi derrubada por decisão judicial, mas não sem antes ser fortemente compartilhada pelo órgão. No entanto, logo após a determinação, todos os posts referentes à esse tema foram excluídos e a Secom afirmou que nunca existiu nenhuma campanha como a mencionada. Fato curioso, no entanto, foi que na noite anterior a essa afirmação, havia sido realizada a seguinte postagem via nstagram:


"No mundo todo são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos. A quase-totalidade dos óbitos se deu com idosos. Portanto, é preciso proteger estas pessoas e todos os integrantes dos grupos de risco com todo cuidado, carinho e respeito. Para estes, o isolamento. Para estes, o isolamento. Para todos os demais, distanciamento, atenção redobrada e muita responsabilidade. Vamos, com cuidado e consciência, voltar à normalidade. #oBrasilNãoPodeParar".


A peça, apesar de ter sua existência negada, vai de encontro à diversas falas realizadas pelo presidente no contexto da atual pandemia. Seja pela defesa de remédios sem comprovação, por uma defesa do retorno à “normalidade” ou falas no sentido de que a crise sanitária já estava se arrefecendo (quando não estava nem ao menos perto de seu pior momento), Bolsonaro mentiu. Mentiu descarada e explicitamente. Mentiu e, em sua defesa, afirmou estar sendo veementemente “perseguido” por veículos de imprensa e ameaçado por organizações comunistas. Disse estar sendo amordaçado por “inimigos da pátria” para que não revelasse a verdade, da qual ele e seus seguidores são os únicos portadores.

Mas o que de fato aconteceu durante esse período foi muito mais dramático do que supostos planos comunistas dignos de uma narrativa da guerra fria. O que aconteceu foi que um sujeito com tendências autoritárias, viajando em ilusões de perseguição, impediu que houvesse uma resposta coordenada e responsável contra a maior crise sanitária do nosso tempo.

No momento em que escrevo esse texto, temos 5 milhões de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e, mais grave, 150 MIL MORTES. Cento e cinquenta mil pessoas significavam algo na vida de outras incontáveis. Nunca chegaremos a saber quantas dessas 150 mil vidas poderiam ter sido salvas se não fosse pelas mentiras enfeitadas como verdade contadas pelo presidente da república e seus asseclas.

Mas uma coisa eu digo: não foi por falta de esforço. São incontáveis as pessoas que tentaram alertar do risco que era iminente mas foram tratadas como “alarmistas”, “petistas”, “vagabundos que só queriam ficar em casa”. Essas pessoas foram repudiadas e olhadas com julgamento e reprovação por falar verdades durasdemais: era necessário parar a nossa vida como conhecíamos, era preciso nos isolar de tudo o que nos era caro, para que pudéssemos evitar o encontro com a morte.

No entanto, não paramos. Nos foi negado o direito fundamental a preservar nossa própria vida e a de quem amamos. Bolsonaro e toda sua corja de negacionistas podem continuar a esconder-se atrás de suas mentiras, mas a Verdade definitivamente não mais se esconde. Ela está aí, no número de mortes e de infectados no Brasil e no mundo, para todo mundo ver e, por mais que seja negada, recai sobre a humanidade de forma impiedosa - mesmo sobre aqueles que recusam-se a enxergá-la.


¹Não há menção autoria ou data específica`da mesma, mas acredita-se que era uma fábula bem conhecida em meados do século XIX.

² Inclusive, se você pesquisar João 8:32 no google, o primeiro resultado que aparecerá é um vídeo postado no facebook oficial da Besta do Planalto.

Que, coincidentemente, apresentava-se semelhante à campanha italiana “Milão não pode parar”, que foi reconhecida como um erro pelo prefeito da cidade. Ver: https://exame.com/brasil/brasil-nao-pode-parar-evoca-milao-que-mudou-de-ideia-com-alta-de-mortes/

Ver: “Secom apaga postagens com slogan 'O Brasil não pode parar' e diz que campanha não existe.”. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/brasil/secom-apaga-postagens-com-slogan-brasil-nao-pode-parar-diz-que-campanha-nao-existe-1-24335636>. Acesso em: 06/10/2020.

“Cloroquina não tem efeito colateral, afirma Bolsonaro.”. Disponível em <https://www.ictq.com.br/politica-farmaceutica/1328-cloroquina-nao-tem-efeito-colateral-afirma-bolsonaro>. Acesso em: 07/10/2020.

“Bolsonaro volta a defender cloroquina contra covid-19 e diz que desemprego leva à morte”. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2020/08/13/bolsonaro-volta-a-defender-cloroquina-contra-covid-19-e-diz-que-desemprego-leva-a-morte.htm>. Acesso em: 08/10/2020

“Bolsonaro pede na TV 'volta à normalidade' e fim do 'confinamento em massa' e diz que meios de comunicação espalharam 'pavor'.” Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/24/bolsonaro-pede-na-tv-volta-a-normalidade-e-fim-do-confinamento-em-massa.ghtml>. Acesso em: 08/08/2020.

“Trump e Bolsonaro mentiram sobre coronavírus com a certeza da impunidade.”. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2020/09/trump-e-bolsonaro-mentiram-sobre-coronavirus-com-a-certeza-da-impunidade.shtml>. Acesso em: 08/08/2020.

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