Há pouquíssimo tempo, em um momento meio Cher Horowitz, de Clueless — alheia a tudo e a todos à minha volta — eu tive a incrível realização de que os absorventes não acompanharam as mulheres por toda a história da humanidade. Longe disso, inclusive. Por muito tempo, a falta de produtos apropriados para o período menstrual, que faz parte do ciclo natural do corpo feminino, privou grande parte da população do mundo de realizar tarefas comuns do dia a dia, como sair de casa para ir à escola, por exemplo. As avós das nossas avós provavelmente não usaram esse tipo de produto por algum período de suas vidas férteis. Ou se usaram, eles, com certeza, não possuíam abas adesivas, não vinham embalados em plástico cor de rosa nem custavam menos do que, hoje, seriam cinquenta centavos por unidade.
Depois dessa epifania meio estúpida, descobri que os primeiros absorventes foram inventados por volta de 1920, junto com o movimento sufragista nos Estados Unidos e a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Mas, ao invés de flores ou do símbolo do gênero feminino, seus pacotes possuíam um design muito mais discreto, feito de papel pardo. E eles nem sequer eram expostos nas prateleiras das farmácias: para comprar um "guardanapo sanitário", mulheres precisavam cochichar nos ouvidos dos farmacêuticos, que retiravam uma embalagem marrom e misteriosa debaixo do balcão, contendo 12 unidades de um material absorvente extremamente grosso. E essa nem é a pior parte. Como ainda não possuíam abas adesivas, esses absorventes não podiam ser grudados diretamente às roupas íntimas e, por isso, precisavam ser anexados a um cinto específico — se você ainda tiver uma bisavó, abrace-a, pois talvez ela já tenha andado por aí sangrando, com um acessório que mais se parecia com um aparelho medieval de tortura grudado na cintura.
Anúncio de sanitary belts em jornal estadunidense
Foi, puramente, por motivações econômicas que a Kotex, marca registrada da multinacional norte-americana Kimberly Clark, passou a normalizar a confecção de anúncios dedicados à venda de mercadorias para a higiene menstrual. A companhia promovia concursos de marketing entre as farmácias a fim de incentivar que elas expusessem seus produtos nas vitrines. De acordo com a historiadora Lara Friedenfelds, as campanhas organizadas pela Kotex foram fundamentais para incentivar o uso de absorventes naquele tempo, pois "apenas a sua disponibilidade nas farmácias não era suficiente para que as mulheres entendessem que era aceitável gastar dinheiro com um produto planejado para fazer suas próprias vidas mais fáceis". As propagandas iniciais da marca retratavam mulheres brancas e glamurosas da classe média que exalavam feminilidade por meio de sorrisos, roupas finas e gracejos com homens elegantes com pinta de galã hollywoodiano — os mesmos homens que dominavam a indústria da propaganda na época.
Casal festeja em pôster promocional da Kotex
Mulher toca um ukulele em pôster promocional da Kotex
Por volta da década de 1950, os anúncios da Kotex passaram a se dirigir a uma faixa etária mais jovem, pois os publicitários da marca visavam conquistar consumidores que fossem leais a ela desde a adolescência. As propagandas de absorventes não eram mais estreladas, exclusivamente, por mulheres da alta sociedade norte-americana, mas também por meninas que haviam entrado na idade fértil há pouco. Também por causa da mudança no público-alvo da marca, a Kotex passou a promover programas de educação menstrual nas escolas, que incluíam desde um livreto com informações essenciais sobre a fisiologia da mulher, intitulado de Very Personally Yours (Muito Pessoal Seu), até um documentário produzido pela Walt Disney a pedido da Kimberly Clark: A História da Menstruação (1946). Em especial, as campanhas educacionais da Kotex disseminaram informações básicas, porém desconhecidas, sobre a menstruação em proporções nunca antes vistas.
Mãe e filha vão ao parque em pôster promocional da Kotex
Mãe e filha vão às compras em pôster promocional da Kotex
Só depois do Movimento dos Direito Civis, nos anos 1960, a Kotex passou a incluir mulheres negras em seus anúncios, com o objetivo de alcançar o novo mercado afro-americano que surgia nos Estados Unidos. Contudo, as afro-americanas foram subjugadas às mesmas pautas e discursos que já vinham sendo endereçados às mulheres brancas desde 1920. Para a historiadora Adriana Ayers, o objetivo do mercado de produtos para a higiene menstrual sempre fora "vender um tipo de feminilidade que fosse socialmente aceitável", ou seja, aquela relacionada à branquitude. O que as propagandas que surgiram nessa época fizeram foi substituir modelos brancas por negras, conservando os mesmos slogans que haviam sido fabricados para atender ao estilo de vida e aos valores da classe média-alta estadunidense. Por meio da representação de um ciclo natural do corpo humano como disfuncional e anti-higiênico, os anúncios elaborados pela Kimberly Clark prometiam uma vida elegantemente branca com Kotex.
Mulher veste rosa e maquia-se em pôster promocional da Kotex
Casal bem-vestido vai a uma festa em pôster promocional da Kotex
No tempo presente, as Nações Unidas reconhecem o acesso a produtos menstruais como uma questão de direitos humanos, que desempenha um papel de importância na conquista de igualdade de gênero. No Brasil, a pobreza menstrual é tamanha que uma em quatro adolescentes não possui nenhum absorvente sequer durante o período de menstruação. As que mais sofrem com isso são as meninas negras, que compõem 65% das 213 mil garotas que frequentam escolas sem acesso a banheiros. Assim como acontecia antes da invenção dos absorventes, muitas delas faltam à escola mensalmente, porque não possuem os meios para frequentar ambientes públicos durante o período menstrual. A exclusão social dessas meninas, racialmente determinada, admite a existência de uma realidade em que produtos como os da Kotex e a emancipação feminina que está relacionada a eles ainda não se materializaram.
As propagandas de absorventes ainda são marcadas pelos estereótipos que foram desenvolvidos pela Kotex e por outras marcas da mesma indústria no século passado. A menstruação ainda é um tópico Muito Pessoal Seu, que deve ser mantido em segredo a qualquer custo, e o uso de produtos menstruais ainda é uma solução rápida para uma irregularidade que acompanha mais da metade da população mundial durante a maior parte de suas vidas. Mesmo que a Kotex tenha surgido em 1920, algumas mulheres nem sequer possuem acesso a absorventes na atualidade, e poucas conhecem o impacto que seus ciclos exercem sobre seus organismos dentro e fora do período menstrual, sendo a disponibilidade de informações a respeito da menopausa ainda mais restrita. O que perdura é a falta de exposição das massas ao assunto e uma construção segregacionista e deturpada de feminilidade e higiene.
Acesse o pdf do livreto Very Personally Yours da Kotex clicando aqui.
Assista ao curta metragem The Story of Menstruation da Disney clicando aqui.
Assista ao documentário Absorvendo o Tabu da Netflix clicando aqui
Autoria: Beatriz Nassar
Revisão: Guilherme Caruso e João Vitor Vedrano
Imagem de Capa: Vivat Vintage/Pinterest
Referências/Fontes
AYERS, Adriana. "The Evolution of Kotex Advertising and the Introduction of the Negro Market". In: Constellations, Volume 2, No. 2, 2011.
ESTUDANTES negras são as mais afetadas pela pobreza menstrual no Brasil. Uol.com.br., 2021. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/03/22/pobreza-menstrual-afeta-educacao-de-brasileiras-principalmente-negras.htm>. Acesso em: 21 Setembro 2021.
OBJECTIVE 4. In: Women Making History: Ten Objects, Many Stories. EdX, 2018. Available at: <https://learning.edx.org/course/course-v1:HarvardX+USW1920+3T2018/home>. Accessed on: September 15, 2021.
SANITARY Napkins and Menstrual Pads of the Past and Present. Owlcation, 2011. Available at: <https://owlcation.com/humanities/Overview-of-menstrual-pads>. Accessed on: September 15, 2021.
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