Há uns meses, me sinto anestesiada. Tentando com tanto esforço viver o presente, mas tendo todas as incertezas do futuro, deixo a vida me levar. Nessa anestesia me sinto flutuando à jusante do rio, esperando a água desembocar em algum lugar que me deixe parada por alguns segundos. E, assim, vou copiando os passos de estranhos na baldeação, tentando não ser atropelada pela pressa.
E esse é o modal metroviário. Gosto dele por ser tanto e tão pouco ao mesmo tempo. O meu cenário mais recorrente, mas raramente o palco das boas histórias. E ele vive nos seus paradoxos. Ali, estamos todos quietos, mas interagindo muito, indo da mesma forma pra lugares diferentes. E, assim, vejo a efervescência das coisas, como o mundo não para, tampouco as pessoas. E essa lataria, correndo sobre uma barra de ferro, me leva, rapidamente, a lugares muito distantes, sem me deixar sentir os pesos do deslocamento. Anestesiada.
Há umas semanas, saí pro dia mais longo do ano. Esqueci a máscara. Voltei pra buscar. Gosto da rua, das praças e dos pontos. Gosto mais ainda quando o sol ainda aponta só com os dedos e me sinto dona de um lugar que não é meu. E assim saí andando, planejando estacionar. A rua ainda seca e o céu empoeirando pareciam sussurrar que a chuva vinha, e percebi que, inconvenientemente, saí de chinelo. Mas tudo bem, sou fã de pegar chuva e, pelo menos, não molharia uma meia à toa.
Chego sempre astuta na estação e me sento na mureta para trocar de máscara. Inesperadamente, falei com alguém antes das seis da manhã: “Moça, de que mês você é?” – me pergunta um moço bem jovem, com a gola amassada e uma bolsa listrada. “Setembro, moço!”. Prontamente, me respondeu: “Certo. E o dia?”. “Vinte e dois”. “Será que você pode me dar um conselho? Onde consigo achar uma namorada nessa cidade? Desde que vim pra cá não consigo achar mais ninguém”. Olha, já procurei muito amor por aqui, mas nunca encontrei, assim como ele. Então lhe aconselhei a baixar um Tinder ou sei lá. Mas comentei que não devia parar de procurar. Isso é algo que valeria a pena.
Passei longos minutos pensando nisso: quantas pessoas estariam procurando um amor agora? E se organizássemos direitinho? Acho que daria errado. Rapidamente fui interrompida por alguns gritos – lembrando: antes das seis da manhã. Um casal chegou correndo na escada ensaiando um barraco. Fiquei assustada, mas sempre curiosa, esperei pra ver o que seria. Na verdade, era só ela que gritava – acredito que com razão – sobre os jantares em família. Tristemente, quando o trem chegou, ela lhe disse “Nesse você não entra! Não comigo. Pega o próximo”. Enquanto alguns procuram, outros desmancham seus enlaces. Mas, apesar da hostilidade, não tive tanta pena do moço, porque sabia que rapidamente outro trem viria lhe buscar.
Entre os passos largos e apressados, cheguei onde queria. Não haveria por que não chegar. Às vezes saio de casa pensando em voltar, e nesse dia tinha saído do metrô pensando em ficar. Mas tudo bem. Algumas horas depois, armei nosso reencontro e fui animada pro meu modal. Chovia muito, como me foi dito logo pela manhã, e aquele chinelo fora a melhor escolha do dia, apesar das controvérsias. Logo na porta da estação, um moço me estende um casaquinho feito à mão, completamente enlaçado em crochê. Apesar da vontade, não tive coragem de pegar pra mim, mas não consegui esquecer daquilo.
Em meio ao nosso esperado reencontro, vejo vários rostos de silêncio, muitos olhares perdidos. Talvez o metrô seja um grande Tinder. Ou às vezes um advogado de divórcio. O trem pode ser cama, riacho, restaurante, companheiro, inimigo, um conhecido, viajante, apressado, uma saudade, um bom sorriso. E hoje foi um livro – que, usualmente, teria preguiça de ler, mas me esforcei um pouco mais – e, talvez, uma geladeira.
Aos finais de longos dias, sempre penso na minha recompensa – porque, mesmo anestesiada, andar também cansa. Pedi uma bolinha de queijo assim que saí. Sei que a Ilda frita os salgados na hora e vende caldo de cana. Apesar de gostar da sua feição e dos lenços que coloca na cabeça, nunca troquei boas palavras com ela, apenas mantinha meu carinho platônico. Mas esse dia foi diferente. Ildinha me entregou meus pedidos e disse “Fritei uma a mais pra você, porque hoje tá frio. Quando chegar em casa toma um banho quente, que essa chuva deve estar gelada”. Ildinha, te amo.
Afinal, sei que o metrô pode não ser tudo isso. Contudo, gosto que seja o cenário das minhas histórias. No metrô te sinto de longe, te amo com força, tenho saudade. Percorro a cidade anestesiada e emocionada como deve ser. E se um dia tudo sumisse, acordasse com o calor da rua, visse os seis carros parados, acreditaria que foi tudo um sonho. E esse é o modal metroviário: onde acontece tudo, mas não passa nada.
Autoria: Amanda Louro Sanchez
Revisão: Julia Maciel de Rodrigues
Imagem da capa: Leo Berne/Reprodução Pinterest
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