Abro a porta. As dobradiças gritam um uivo estridente. Acontece sempre, e sempre digo para mim mesmo que preciso chamar alguém para arrumar isso, mas então acabo me distraindo e deixando para lá – um rito que se repete todos os dias. Não que importe agora, já que não vou nunca mais pensar isso. Pelo menos não sobre essa porta, não sobre esse apartamento.
Espio o quarto. Com as persianas cerradas, a única luz é a que escapa da janela da sala às minhas costas, para se derramar sobre o chão em um retângulo iluminado. Vazio, a única coisa demonstrando que foi nesse cômodo que eu passei a maior parte das minhas noites nos últimos quatro anos é minha silhueta escura desenhada nos tacos de madeira alumiados. Achei um tanto ingrato, se quer saber o que acho de verdade, já que os limpei tantas vezes que perdi a conta – se é que alguém toma nota de quantas vezes limpa o chão do próprio quarto. Afinal, sempre tive que me esforçar para não deixar marcas, o apartamento é alugado. Era.
Quando pisei aqui pela primeira vez quatro anos atrás, vindo do interior para cursar uma faculdade na cidade grande, isso fazia muito sentido. Durante toda minha – não tão longa – vida, transitei pelo mundo sem deixar marcas ou, ao menos, algumas poucas e inofensivas, passíveis de serem retiradas com uma passada de pano imbuído de produto químico, como sujeira no chão do quarto. Foi assim que aprendi. Lembro da primeira vez que fui dormir na casa de um amigo da escola anos atrás, minha mãe me enviou com toalhas, roupa de cama própria, um lanche e ordens expressas de não atrapalhar. Isso significando se fazer notar de qualquer forma que possa ser tomada como minimamente negativa, e foi o que tentei evitar. Lembro que o frio daquela noite surpreendeu, então a atravessei em claro, tiritando sob meu lençol trazido de casa. Peguei uma gripe brava depois, mas o importante é que não cometi o erro de atrapalhar.
A vantagem desse tipo de existência é a facilidade de se mudar. Uma planta com raízes rasas é trocada de vaso facilmente, sem sujeira ou bagunça, e é isso que eu era. Tendo me mudado periodicamente por cidades do interior quando era criança em virtude do trabalho do meu pai, quase nunca tinha tempo de me firmar e, quando o tinha, não o fazia, já que não podia me fazer notar e correr o risco de atrapalhar.
Fecho a porta. As dobradiças reclamam novamente, mas eu ignoro pela última vez na vida. Viro para observar a sala, que não é muito grande. Na parede oposta a mim, a bancada de pedra negra com cooktop e os armarinhos que configuravam, junto da minha defunta geladeira, o canto que eu chamava de cozinha. Além disso, não há móvel nenhum. Se você já se mudou antes, sabe qual é a singular sensação trazida pela visão da sua casa depenada de tudo que a tornava sua; a ausência dos móveis, cortinas e tapetes joga na sua cara que nada será como era antes na sua vida. Para fugir desse pensamento, meus olhos seguem o raio de sol que vaza da janela à esquerda, expondo muitos grânulos de poeira em seu caminho e recaindo sobre um risco grosso e escuro no chão de madeira.
Sinto um sorriso sendo pintado no meu rosto. Antes de levar embora tudo que tornava esse quarto-e-sala meu, foi por esse risco que descobri que, de fato, algo havia mudado – não no apartamento, mas em mim. Quando pisei na faculdade pela primeira vez, sabia que não deveria atrapalhar ninguém – coisa que minha mãe não precisou mais expressar em palavras; a máxima já estava talhada no meu cérebro. E assim prossegui, vivendo uma rotina que consistia estritamente no circuito casa-faculdade-casa. No entanto, afinar-me e grudar-me na parede como uma sombra se mostraria difícil.
Afinal, eventualmente eu fui obrigado a fazer trabalhos em grupo, nos quais se fazia necessário discutir, discordar, corrigir e ser corrigido. E tudo isso, juntamente com suas consequências, eram compreendidas pelo amplo significado que atrapalhar tinha na minha vida. Reuniões rapidamente se mostraram uma verdadeira salada de emoções, entre o tormento da culpa de incomodar e o calor de estar me aproximando das pessoas e – quem diria – gostando de passar tempo com alguma delas. Feliz ou infelizmente, essas relações incipientes acabaram vazando das reuniões de estudo que as originaram e verteram em cumprimentos pelos corredores, companhia durante as aulas e encontros após elas. Cada etapa dessa experiência tão comum para a maioria das pessoas tremia alguns alicerces do meu cérebro, e cada investida esgarçava mais meu limite para marcar e ser marcado pelas pessoas ao meu redor.
A questão com mudanças de comportamento – e de casas e apartamentos – é que elas não ocorrem de um dia para o outro. Enquanto é fácil perceber que tudo está diferente quando você vê aquele amontoado de cômodos vazios e compara com a memória do seu lar populado de cacarecos com sua personalidade, é bem mais difícil apontar quando exatamente começou a vontade de mudar de ares. Traçar o início da evolução da própria personalidade é ainda mais complexo, mesmo que seja simples olhar para trás e julgar seu eu do passado.
Perdido nesses pensamentos, reencontro meu foco na listra preta no chão, que ainda miro. Enquanto não sei dizer quando mudei, essa é definitivamente uma marca de que aconteceu uma mudança. Ela foi feita no dia em que havia comprado um sofá novo e, ao invés de pagar alguém para isso, chamei alguns amigos para me ajudar a subir e colocá-lo na sala. Tudo foi feito com o maior cuidado por todo o trajeto, mas, logo quando íamos ajeitá-lo, um dos quatro pés escapou da minha mão e caiu com um estrondo, riscando a madeira. Claro que, ao invés de nos preocuparmos, rimos muito. Eu não estava me atormentando por ter movimentado meus amigos a gastarem uma tarde carregando um pedaço pesado de mobília.
De repente, percebi que eu não queria mais não atrapalhar. Até porque esse é um termo bem ruim. Olhando para aquela marca, percebi que eu não queria ser só uma sombra na memória das pessoas ao meu redor que me são caras. Eu quero ter raízes profundas, que talvez tornem partidas e despedidas mais dolorosas, mas que façam todos os outros momentos valerem a pena.
Atravesso a sala com poucos passos, abro a porta do apartamento e saio. No corredor, viro-me e tranco a porta.
Ela não range.
Autoria: Pedro Augusto Rolim
Revisão: Enrico Recco e André Rhinow
Imagem de capa: Harun Ayhan
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