As mudanças climáticas se configuram como um dos maiores desafios para a humanidade no século XXI, devido à previsão de um progressivo aumento das temperaturas na ausência de medidas radicais na redução das emissões de gases do efeito estufa e na forma como nos relacionamos com a natureza. De acordo com o IPCC [1] de agosto deste ano, desastres ambientais que ocorriam apenas uma vez em cada século terão a sua frequência alterada pelo aumento irreversível do nível do mar, e os cientistas envolvidos nesse estudo preveem que os mesmos eventos ocorrerão uma ou duas vezes por década nos próximos anos [2]. Dessa forma, o amplo consenso da influência humana nesse e em outros processos de mudanças climáticas [3] nos fazem questionar o modelo de produção usado nos últimos séculos, abrindo espaço para pensar e construir sistemas alternativos ao capitalismo que sejam mais sustentáveis.
No entanto, existem propostas de reformas e de uma adaptação para um “capitalismo verde e sustentável” dominando a discussão pública que estão alinhadas às tentativas de greenwashing, termo criado pelo ambientalista Jay Westerveld após observar uma propaganda de um hotel que pregava sobre sustentabilidade em relação às toalhas, enquanto o estabelecimento possuía fontes de desperdícios muito maiores em outras áreas [4]. Nesse sentido, elementos e discursos focados em práticas individuais e que desconsideram as relações sistêmicas dentro dos processos naturais, como a promoção do plantio de árvores em larga escala para supostamente salvar o planeta, foram adotados por empresas e Estados para desviarem possíveis críticas sobre as suas linhas de produção, potenciais explorações de mão de obra barata e outras violações ambientais e de direitos humanos. Com isso, o sistema de produção capitalista tenta mais uma vez se metamorfosear para evitar movimentos contrários, que pensem uma outra organização de sociedade. Ao tratar de natureza e sustentabilidade, o capitalismo possui características estruturantes e um histórico extrativista que contrariam uma proposta ecológica ou sustentável, tornando contestável a efetividade das possíveis reformas.
O sistema de produção capitalista tem como uma das suas características fundamentais o acúmulo e a expansão no estoque de capitais, ou seja, os donos de fábricas, máquinas e latifúndios buscam expandir a sua capacidade produtiva ad infinitum, monopolizando seus respectivos setores produtivos a fim de maximizarem os seus lucros [5]. Porém, esse estilo de produção encontra dificuldades em ser sustentável a longo prazo. A quantidade finita de recursos existentes motiva ciclos de novas áreas de exploração para expandir os níveis de produção, um dos objetivos da colonização de continentes como África e Ásia durante os séculos XVIII e XIX. Mais recentemente, existem linhas de pesquisa da NASA e interesses privados em explorar recursos de meteoros, migrando o modo de exploração extrativista até mesmo para o espaço [6]. Dessa maneira, o pensamento hegemônico favorece a perpetuação do capitalismo como modelo de produção absoluto e faz com que quaisquer contestações ou projetos alternativos de sociedade sejam vistos como idealistas e utópicos, pois considera real e concreto apenas o capitalismo.
Estudando essa dinâmica, o escritor Mark Fisher o denominou “realismo capitalista”, ou seja, a noção de que, nas últimas décadas, o capitalismo foi pensado como o único sistema político e econômico viável e ao qual outra alternativa é vista como incoerente e utópica [7]. O fim da Guerra Fria devido à queda da União Soviética – o principal Estado contestador do capitalismo e representante de uma ordem alternativa, o comunismo – além do avanço da globalização com características do livre-mercado e outros preceitos liberais, como a promoção da democracia, fizeram com que houvesse a percepção de que a ordem capitalista havia vencido a batalha ideológica e se provado como o melhor sistema econômico e político. Nesse contexto, é atribuída a frase “não há alternativa” ao governo da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, expoente das políticas de redução do tamanho do Estado e financeirização da economia, em que se refere aos fenômenos da globalização, do livre-mercado e ao capitalismo em geral. Com respaldo acadêmico, autores como Francis Fukuyama publicaram textos no começo da década de 1990, concluindo que havíamos chegado ao “fim da história”, em que o modelo de democracias liberais, aliado a políticas de livre-mercado, representa o ápice do desenvolvimento humano [8].
Portanto, dentro dessa conjuntura, como poderíamos pensar em sociedades alternativas que propõem métodos mais sustentáveis de produção e que satisfaçam outras necessidades humanas, como o direito à saúde, à educação e à moradia? A resposta para essa pergunta talvez se encontre nas artes com o seu poder de inspiração e também de resistência. O movimento incipiente do solarpunk expressa por meio de imagens conceituais e de alguns contos, uma visão mais otimista do futuro próximo e que nos abre a possibilidade de imaginar novas trajetórias e possibilidades para a sociedade. Nesse movimento, a humanidade conseguiu se conciliar com a natureza por meio da aliança entre práticas originárias de cada localidade, como o uso de materiais específicos para capturar calor, e a tecnologia em prol do bem-estar da população. Tendo como pontos principais a ingenuidade, o desenvolvimento comunitário e a independência [9], o solarpunk adere ao sufixo punk como forma de simbolizar o seu rompimento radical com os valores individualistas e extrativistas do capitalismo em prol de um pensamento pós-capitalista, centrado em valores comunitários alinhados aos processos da natureza.
Dessa forma, o solarpunk se diferencia de outras propostas, como o cyberpunk, ao propor ser uma inspiração para o futuro ao invés de ser mais um movimento alertando sobre os possíveis males futuros. A partir disso, práticas como jardinagem de guerrilha e agroecologia podem ser pensadas como ações que se correlacionam com o solarpunk. A jardinagem de guerrilha promove o plantio de diversos tipos de plantas e flores nativas em lugares públicos e de modo não-autorizado como forma de protesto à urbanização acinzentada e ao greenwashing [10]. Por sua vez, a agroecologia coopera com os ciclos naturais característicos de florestas para o cultivo de alimentos e outros fins no intuito de não alienar a natureza e promover a biodiversidade [11]. Por fim, o ato de imaginar novos sistemas políticos e econômicos e tentá-los pôr em prática está no centro da ingenuidade e da constituição do que nos faz humanos. Dessa maneira, a vivência em um ambiente de desesperança em que é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, frase atribuída aos pensadores Slavoj Zizek e Fredric Jameson, não deve nos fazer parar de imaginar e de lutar.
Autoria: Gustavo Alves
Revisão: João Vítor Garcia e Júlia Rodrigues
Imagem da capa: Imgur (Link nas referências)
Referências:
[1]: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel about Climate Change)
[2]: Mudanças climáticas: cinco coisas que descobrimos com novo relatório do IPCC. BBC News Brasil, Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58153008>. Acesso em: 29 out. 2021.
[3]: IPCC, 2021: Summary for Policymakers. In: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Masson-Delmotte, V., P. Zhai, A. Pirani, S. L. Connors, C. Péan, S. Berger, N. Caud, Y. Chen, L. Goldfarb, M. I. Gomis, M. Huang, K. Leitzell, E. Lonnoy, J.B.R. Matthews, T. K. Maycock, T. Waterfield, O. Yelekçi, R. Yu and B. Zhou (eds.)]. Cambridge University Press. In Press.
[4]: A History of Greenwashing: How Dirty Towels Impacted the Green Movement - DailyFinance. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20150923212726/http://www.dailyfinance.com/2011/02/12/the-history-of-greenwashing-how-dirty-towels-impacted-the-green/>. Acesso em: 30 out. 2021.
[5]: MARX, Karl; RANIERI, Jesus. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
[6]: Cientistas descobrem asteroides com mais metais do que as reservas terrestres. Forbes Brasil. Disponível em: <https://forbes.com.br/forbes-tech/2021/10/cientistas-descobrem-asteroides-com-mais-metais-do-que-as-reservas-terrestres/>. Acesso em: 30 out. 2021.
[7]: FISHER, Mark. Capitalist realism: is there no alternative? Winchester, UK: Zero Books, 2009. (Zero books).
[8]: FUKUYAMA, Francis. The End of History? The National Interest, n. 16, p. 3–18, 1989.
[9]: Solarpunk: Notes toward a manifesto | Project Hieroglyph. Disponível em: <https://hieroglyph.asu.edu/2014/09/solarpunk-notes-toward-a-manifesto/>. Acesso em: 30 out. 2021.
[10]: MORÉ, Carol T. Jardinagem de Guerrilha: Pessoas estão plantando flores em buracos nas ruas como forma de protesto. FTCMAG. Disponível em: <https://followthecolours.com.br/art-attack/jardinagem-de-guerrilha-flores-buracos/>. Acesso em: 3 nov. 2021.
[11]: Da Semente ao Prato - agroecologia, autonomia e vida digna. Disponível em: <https://teiadospovos.org/da-semente-ao-prato-agroecologia-autonomia-e-vida-digna/>. Acesso em: 3 nov. 2021.
[Imagem da capa]: I live in a modern EcoVillage and it’s pretty much the real-world Shire - aaedehuizen post - Imgur. Disponível em: <https://imgur.com/gallery/KbPrjkp>. Acesso em: 3 nov. 2021.
[Imagem 2]: Amazofuturism, J. Queiroz. ArtStation. Disponível em: <https://www.artstation.com/artwork/4bkOl1>. Acesso em: 3 nov. 2021.
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