Pra que assistir ficções sobre viagem no tempo se são todas iguais? A nossa redatora Luiza Castelo critica o novo filme original da Netflix "A Gente se Vê Ontem", que consegue abordar temas muito além de uma simples viagem no tempo.
A Netflix lançou, no começo de mês, seu mais recente filme original, a ficção científica “A Gente se Vê Ontem”. Quem assiste ao filme esperando apenas mais uma história sobre viagem no tempo será duramente surpreendido. O filme, escrito e dirigido por Stefon Bristol e produzido pelo premiado diretor Spike Lee, narra a história da jovem C.J. e seu melhor amigo Sebastian, dois adolescentes brilhantes que descobrem a fórmula da viagem do tempo no terceiro ano do ensino médio. Depois que o irmão mais velho de C.J. é brutalmente assassinado pela polícia, após ser confundido com um assaltante, a garota decide voltar no tempo para salvá-lo.
Ainda que o filme transite por muitos dos clichês sempre presentes em histórias de viagem no tempo, “A Gente Se Vê Ontem” se diferencia de outras obras do gênero. Bristol se utiliza da ferramenta narrativa da viagem no tempo e dos dilemas filosóficos que a acompanham como veículos para abordar temas altamente relevantes. Através da ficção científica, ele conta uma história de racismo e violência policial. O ponto central da trama não é a viagem no tempo em si, mas a situação de risco constante na qual jovens afrodescendentes se encontram e a dor dos familiares que ficam depois de uma tragédia. O final do filme, surpreendente e inesperado, passa uma mensagem forte: histórias como a de C.J. e seu irmão não vêm, nas palavras do diretor, “embaladas com um laço cor-de-rosa”. Um final feliz é um privilégio do qual boa parte da população não desfruta.
Refletindo sobre o filme, me lembrei de uma conversa que tive com um conhecido, algum tempo atrás. Ele dizia que os filmes atuais não se importam mais em fazer arte. Os produtores estão interessados ou em ganhar dinheiro ou em fazer algum ponto político. Ele até pode estar certo no que se refere ao dinheiro, mas afirmar que o uso do cinema para falar de questões políticas ou relevantes seja uma característica dos filmes atuais demonstra certa ignorância.
A arte da narrativa, seja na literatura, no teatro ou no cinema, sempre foi usada como uma poderosa ferramenta política, de conscientização ou de análise. Ocorre desde a filosofia contida nos mitos gregos até as mensagens políticas e sociais expressas em obras como 1984 ou o Conto da Aia. Através da ficção, é possível abordar temas de extrema importância de maneira complexa, profunda e sensível, dando ao leitor ou à audiência a possibilidade de assimilar e refletir sobre diversas questões. Além de colocar temas relevantes em pauta, a ficção nos permite falar sobre eles de formas novas e inusitadas. Além de dizer o que precisa ser dito, um bom artista tem o ônus de fazê-lo de maneira original e criativa, sensível e impactante. Não é uma tarefa simples.
Em “A Gente Se Vê Ontem”, Bristol foi capaz de criar uma boa trama de aventura e ficção científica e, através dela, abordar um tema extremamente atual de maneira séria e consciente. Ele não é o primeiro e dificilmente será o último a fazer algo do tipo, mas a singela genialidade do enredo é inegável.
Vivemos em um mundo onde, infelizmente, não faltam problemas a serem debatidos. Nunca foram tão necessários artistas capazes de enfrentá-los e destrinchá-los de maneiras inovadoras, tocantes e capazes de gerar impacto.
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