"Automobilismo é assunto de homem". "Você dirige bem, parece um homem"."O único capacete que uma mulher deve usar é o de cabeleireiro". "Mulheres não têm condições de correr na elite do automobilismo porque as exigências físicas do esporte não fazem parte da natureza feminina". "A fórmula 1 é muito física para mulheres", como dito por Helmut Marko, consultor da equipe RBR, um dos importantes líderes do automobilismo. Frases como essas são reflexos culturais de uma sociedade patriarcal que atrela carros à imagem masculina, motivo pelo qual a presença de homens nos esportes a motor é tão marcante. Entretanto, cada vez mais as mulheres buscam conquistar seu espaço nas pistas.
Apesar dos primeiros registros de corridas com automóveis datarem de 1867, a participação feminina só veio 30 anos depois. Em 1897, em Paris, um grupo de mulheres se juntou para realizar uma corrida de triciclos motorizados, que ganhou o nome de "Campeonato das Cadeiras Motorizadas". Posteriormente, em 1930, as pilotas Odette Siko e Marguerite Mareuse se destacaram por fazerem parte da primeira equipe feminina a participar das 24 horas de Le Mans. Em seu primeiro ano de participação, conquistaram o sétimo lugar, chamando atenção pela boa performance no campeonato. A vitória mais recente de mulheres nesse campeonato foi em 1975, conquistada pelas francesas Marianne Hoepfner e Michele Mouton.
Outros nomes femininos que fizeram história nas pistas são: Danica Patrick, a estadunidense que conquistou feitos importantes nas duas principais categorias do país, a Fórmula Indy e Nascar; Maria Teresa de Filippis, se destacando como a primeira a participar da Fórmula 1; as italianas Leila Lombardi e Giovanna Amati também se revelaram nas pistas dos Grandes Prêmios (GP) - Leila estreou no GP da Grã Bretanha em 1974 pela equipe Brabham, e alguns anos depois, em 1992, veio a estreia de Amati.
Apesar dos avanços das conquistas femininas, ainda há muito a ser conquistado. Andar nos autódromos ainda significa estar em constante contato com uma grande presença masculina, seja quanto público, pilotos, engenheiros ou chefes de equipe. Por muito tempo, a única presença feminina que se observava era a das modelos, chamadas de "grid girls". De maneira bastante sexualizada, elas eram responsáveis por segurar o guarda-sol para os pilotos e davam as bandeiradas no início das corridas. Infelizmente, muitos videoclipes de músicas e outras ilustrações de corridas a motor ainda usam a imagem de mulheres servindo aos homens. Diante disso, em 2018, a Fórmula 1 aboliu a presença das "grid girls'' em seus campeonatos, em uma tentativa de evitar que a presença das mulheres nas pistas continuasse sinônimo de objetificação, e de promover uma maior inclusão feminina no esporte.
As barreiras que ainda afastam as mulheres do esporte podem ser compreendidas em diversas esferas, como esclarecem algumas das pilotos com destaque. Apesar de ex-pilotos, como Katherine Legge, da Fórmula 1, explicarem que o automobilismo é um esporte que possui a máquina como intermediário, reduzindo as vantagens físicas do gênero, alguns líderes de equipes insistem em afirmar que as mulheres não poderiam participar das corridas por serem mais frágeis e não terem a força física necessária. Essa ideia encontra reforço em um modelo cultural em que os meninos são incentivados pelos pais a competir desde pequenos com os carrinhos de brinquedos. O incentivo das meninas à prática de esportes, quando acontece, é caracteristicamente voltado a modalidades ditas "femininas" ou pouco competitivas.
O Kart é o início da carreira de muitos dos pilotos profissionais. Atuais destaques no automobilismo, as brasileiras Bia Figueiredo e Bruna Tomaselli, contaram em entrevista concedida à Gazeta Vargas que também tiveram o primeiro contato com o esporte através do kart. Elas relatam que gostavam do esporte desde pequenas, e foram incentivadas a correr ao ganharem um carro de kart de presente dos pais. Tendo isso em mente, recentemente, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA), em parceria com a Ferrari, desenvolveu um programa chamado "The Girls on Track-Rising Star", o qual busca promover talentos de jovens meninas nas pistas de kart, preparando-as para um futuro nas pistas profissionais e reduzindo obstáculos para a sua chegada ao campeonato mais esperado da carreira, a Fórmula 1.
Bruna Tomaselli, a atual representante brasileira na categoria WSeries, competição de fórmula exclusiva para mulheres que busca prepará-las para correr em campeonatos superiores como a F1, contou que a questão financeira é uma das principais barreiras do esporte. O automobilismo é um esporte caro independentemente do gênero do piloto, e conseguir patrocínio não é um processo fácil. Participar das temporadas requer muito dinheiro, destinado a pagar os treinos, a equipe e o próprio campeonato. Para a piloto, a WSeries foi uma oportunidade de conseguir se manter no esporte e se destacar, mesmo com as barreiras financeiras - isso porque as participantes da temporada não precisam pagar para participar, como acontece em outros campeonatos, o que diminui bastante os custos. Tomaselli enfatiza a felicidade de fazer parte do grid e poder dar visibilidade às mulheres no esporte, inspirando muitas outras com a sua trajetória.
Além disso, a influência de Bia Figueiredo foi essencial para a carreira da Bruna. Envolvendo feedbacks e dicas de como melhorar nas pistas, o apoio mútuo entre elas foi fundamental para o seu desenvolvimento profissional, afirmou Tomaselli. A visibilidade que Bia teve ao longo dos anos, tendo sido a primeira mulher a correr na Stock Car Brasil, é certamente uma inspiração para que outras meninas comecem as suas carreiras, assim como foi para Bruna, que também ganhou bastante destaque e reconhecimento nas pistas. Ver outras mulheres competindo no esporte alimenta nas garotas o sentimento de que é sim possível chegar lá, e não, o automobilismo não é assunto de homem.
Sem dúvidas, Bia Figueiredo marcou a história das mulheres no automobilismo. Iniciou sua carreira internacional em 2008, nos Estados Unidos, no Indy Lights, onde conquistou a primeira vitória feminina no campeonato na décima etapa. No mesmo ano, foi premiada com "Award Rising Stars"¹. Além disso, participou de outras corridas como Endurance, Fórmula Indy e Fórmula Renault Brasileira. Na Stock Car, esteve ao lado de Rachel Loh como engenheira de sua equipe, a única engenheira mulher da Stock Car. Foi a primeira vez de ambas trabalhando com mulheres nos autódromos.
Se é raro encontrar mulheres pilotando, encontrá-las ocupando cargos de engenheiras e líderes de equipe não é diferente. Em 2019, Marga Torres, engenheira da equipe de Lewis Hamilton, foi convidada pelo piloto para subir ao pódio, dando visibilidade à presença feminina também dentro das equipes. Além disso, a inglesa Claire Williams liderou a equipe da Williams na Fórmula 1 até 2020. Cada vez mais observa-se mulheres atingindo posições importantes dentro dos autódromos, mas o caminho a ser percorrido até a plena inclusão feminina ainda é longo.
Por muito tempo, Bia Figueiredo era vista como um ET nos autódromos, como ela brinca. As pessoas estranhavam a presença de uma mulher nas pistas. Quando pequena, contou que escutava comentários de pais no kart, dizendo que se os seus filhos perdessem para ela, uma menina, iriam perder o carro. Muitas vezes, batiam no carro dela, já que preferiam tirá-la da corrida do que perder para uma mulher. Como resposta, Bia batia de volta, ganhando aos poucos o respeito de seus colegas de pista.
Apesar das barreiras impostas por uma cultura patriarcal e a marcante presença masculina nas pistas, as mulheres estão correndo por seu espaço. O caminho para conquistar cada vez mais inclusão feminina ainda é longo, mas iniciativas, como a da Federação Internacional de Automobilismo, vêm promovendo maiores oportunidades, mostrando que automobilismo também é assunto de mulher. Mulheres estão usando capacetes de corrida. Mulheres têm condições de correr nos campeonatos de automobilismo. A fórmula 1 também é para mulheres.
Referência:
1.Award Rising Star, Prêmio Estrela em Ascensão, criado pela Firestone, patrocinadora da Indy Lights
Revisão: Glendha Visani e Guilherme Caruso
Imagem de capa: Carolina Eguchi
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