No dia 14 de abril de 2022, estreou nos cinemas o primeiro longa dirigido pelo ator baiano Lázaro Ramos, Medida Provisória, protagonizado por sua esposa Taís Araújo. Em entrevista para o canal do YouTube do jornal Metrópoles, ao tratar sobre a exibição da produção nas telonas, o casal de artistas expressa uma triste realidade do cinema brasileiro: não há o devido espaço nas salas de cinema para os filmes nacionais.
A data de lançamento do filme coincidiu com o lançamento no Brasil do blockbuster hollywoodiano Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore. Assim, quando questionado pelo entrevistador se não seria interessante adiar a estreia de seu filme com o fim de garantir um maior número de salas para exibição e, com isso, uma melhor bilheteria, Ramos afirma que o problema vai muito além da data específica. Isto é, além do impasse que haveria por conta do descompasso com a publicidade feita, a pouca disponibilidade de salas para o seu filme seria inevitável independentemente do momento, pois a difusão de grandes filmes estrangeiros é sempre priorizada nos nossos cinemas.
Certamente, há diversos fatores que contribuem para a subvalorização do cinema nacional. A começar pela estrutura de produção e distribuição da indústria cinematográfica no país, que fica longe de competir com o cinema internacional, principalmente o americano, em termos de investimento, força, marketing e organização. Esse fato, contudo, não determina o valor do conteúdo das obras brasileiras. Pelo contrário, encobre o ciclo vicioso de não apreciação do produto nacional advindo de um “viralatismo” que culmina na falta de bilheteria e retorno financeiro para alimentar e aprimorar a própria indústria. Isso, infelizmente, empaca o cenário de produção de cinema brasileiro em um locus em que poucos diretores conseguem se desenvolver e manter seus projetos. Para entender essa realidade, basta olhar quem está por trás da direção e/ou produção de alguns dos mais conhecidos e referenciados filmes nacionais. Os irmãos Walter e João Moreira Salles, herdeiros de um dos mais ricos banqueiros do país, acionistas do Itaú Unibanco e controladores da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), com patrimônio na casa dos bilhões (mais precisamente 13,5 bi cada[1]), são os responsáveis por nada menos que Central do Brasil, Cidade de Deus e Aquarius. Petra Costa, indicada ao Oscar de melhor documentário em 2020 por Democracia em Vertigem e diretora de Elena, é herdeira de uma das maiores construtoras do país, a Andrade Gutierrez.
Assim, fica evidente que, apesar de não ser determinante (já que para toda regra há exceção), faz filme no Brasil quem tem dinheiro, ou, no mínimo, os contatos para “fazer acontecer”. O elitismo na produção de cinema também transparece na sistemática exclusiva do acesso às salas, que é um luxo para grande parte da população. A média de preço da entrada em uma sala comum em São Paulo é 46 reais inteira e 23, meia, sem contar com os preços inflacionados da pipoca e afins. Além disso, o número de salas de exibição por região é muito mal distribuído[2]. Os dados do Informe de Mercado da ANCINE em 2020 apontam que a região sudeste possui 54,4% de toda a oferta de salas de cinema do país no ano analisado. Ainda, no mesmo estudo, demonstra-se que 87,5% dos cinemas até o ano de 2020 estão localizados em shoppings centers, o que implicitamente ressoa o caráter excludente e comercial da lógica de cinemas brasileiros, uma vez que a população de menor poder aquisitivo muitas vezes não tem acesso a esses espaços por conta de dificuldades geográficas, sociais e financeiras. Além disso, o próprio tipo de divulgação e conteúdo de muitos filmes prejudica uma imagem acessível e interessante ao grande público. Cria-se mais uma barreira ao publicizar obras com um pretensioso status “cult”, quando não se trata de obras de humor ou infantis, no geral. Apesar disso, vale notar que há um progressivo avanço quanto à acessibilidade de PCDs (pessoas com deficiência) em salas de cinema: 96% das salas nacionais possuem acento especial para pessoas cadeirantes, 77% para pessoas obesas, 58% para pessoas com mobilidade reduzida, e 39% possuem tecnologia assistiva para pessoas com deficiência visual e para pessoas com deficiência auditiva.
Meio a esse cenário, a Agência Nacional de Cinema (ANCINE), que é responsável por regular e promover o desenvolvimento dessa indústria, falhou em parte nos seus esforços para abranger o acesso ao cinema em termos práticos. Isso se deve tanto aos aspectos políticos, que penetram inevitavelmente a esfera administrativa regulatória, quanto à fraca implementação e falta de atualização apropriada de suas medidas. Apesar de seus mecanismos de incentivo de fomento direto, mais bem detalhados no site oficial da agência[3], como seu programa de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro, dentre outros, não se vê resultados que impactam o campo da distribuição e da exibição de maneira efetiva, o que retoma o ciclo vicioso de pouca valorização e consequente más condições de acesso ao cinema nacional. Dentre os mecanismos indiretos de fomento à área audiovisual, a Lei Rouanet não traz enfoque à distribuição, mas a Lei do Audiovisual traz previsões objetivas de incentivo nesse sentido. Entretanto, conforme os dados da realidade expostos, mesmo este último não parece estar produzindo muito efeitos positivos para o acesso ao público. Ainda, há os Fundos de financiamento da indústria cinematográfica nacional (Funcines) e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), vinculados ao BNDES. No entanto, apesar de haver de fato uma razoável arrecadação de valores a partir deles, parece que os valores não estão sendo bem alocados na cadeia produtiva de modo equilibrado e que abranja a distribuição e exibição das obras nacionais.
Isto posto, vale a tese, ainda que um pouco antiga (2015) de Danielle dos Santos Borges[4], de que “a obra nacional não tem sido distribuída e exibida de forma suficiente a alcançar o público e que o crescimento da produção está em descompasso com o público brasileiro por conta tanto de aspectos internos à atividade cinematográfica quanto a mudanças tecnológicas associadas a novos modos de consumo do produto audiovisual, substituindo as salas de cinema”. O que resta é a conclusão de que o mercado de cinema nacional se centra nos filmes de visão comercial e está apenas começando, a passos lentos, a se adaptar às novas dinâmicas do setor com o crescimento da importância das plataformas de streaming, que carecem de regulação apropriada e estruturação no nosso ordenamento normativo. Assim, com a internacionalização maciça e a agressividade acentuada das empresas dominantes do mercado, a presença de grandes empresas de escala internacional que dominam o mercado, as majors, do ramo audiovisual desencadeia a necessidade de adoção de estratégias de codistribuição ou algum tipo de vinculação a elas para que seja minimamente fértil o solo que se planta o filme nacional, mesmo no seu próprio território.
Em março de 2021, foram reconhecidas como constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) as chamadas “cotas de tela”[5] e, no mesmo ano, "a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que torna permanente a obrigatoriedade de exibição comercial de filmes brasileiros em salas de cinema"[6], dado que o Programa Nacional de Cinema as instituiu pelo prazo de 20 anos a partir de 2001 por meio do art. 55, caput, da Medida Provisória n.º 2.228-1/01. Apesar de críticas e questionamentos quanto a sua eficácia para mudar o cenário de distribuição e exibição do audiovisual no país, as cotas de tela podem ser vistas como um dos mais basilares mecanismos de manutenção de algum direito de "ocupação de espaço" e reprodução às obras nacionais nos cinemas, sem que tenham que, de alguma maneira, sucumbir às exigências puramente mercadológicas ou ao fiel apoio das grandes majors.
No fim, o cenário geral do Brasil diz muito a respeito da negligência do país diante de assuntos relacionados à cultura e arte, especialmente em tempos como os do governo atual. O complexo de vira-lata do brasileiro ressoa desde seu desinteresse pelo que vem de dentro à complacência com o modo como achamos normal “apenas” consumir o que é de fora, principalmente produtos norte-americanos. Se uma figura ilustre como Lázaro Ramos receia o baixo alcance de seu filme ao público, mesmo com milhões de seguidores nas redes sociais, influência no campo e uma produção feita por grandes produtoras, “à espreita” é um eufemismo para a situação dos novos agentes do mercado e diretores independentes. Então, frente ao desincentivo governamental e a sucateação da produção nacional, é fundamental que nós, telespectadores, apoiemos a disseminação da cultura pátria. Nos resta, como apreciadores da cultura nacional, sempre que possível, assistir no cinema as nossas próprias produções e disseminar essa prática a quem pudermos. A arte salva, salvemos a arte nacional.
Autoria: Maria Eduarda Neuburger Freire
Revisão: André Rhinow
Imagem de capa: "An Empty Movie Theater", N.Y.C., 1971 - Diane Arbus
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Referências:
[1] CASTRO, Mariangela. 10 irmãos bilionários no Brasil e no mundo. Forbes Brasil. Disponível em: <https://forbes.com.br/forbes-money/2021/09/10-irmaos-bilionarios-no-brasil-e-no-mundo/>. Acesso em: 29 abr. 2022.
[2] BRASIL. Observatório Brasileiro de Cinema e do Audiovisual. Agência Nacional de Cinema (org.). Salas de Exibição: informe de mercado. 2020 pág. 23. Disponível em: https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/repositorio/pdf/salas_de_exibicao_2020.pdf. Acesso em: 29 abr. 2022.
[3] Quais são os mecanismos de fomento direto? | ANCINE | Agência Nacional do Cinema | Ministério da Turismo| Governo Federal. Ancine.gov.br. Disponível em: <https://antigo.ancine.gov.br/pt-br/conteudo/quais-s-o-os-mecanismos-de-fomento-direto>. Acesso em: 29 abr. 2022.
[4] BORGES, D. dos S. A produção cinematográfica brasileira (1995-2014) e o atual modelo de políticas públicas para o cinema nacional. Revista EPTIC, v. 17, n. 3, p. 178-200, 2015.
[5] Das cotas de tela constitui a obrigação das empresas exibidoras de incluírem em sua programação obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem. O número de dias para o cumprimento da cota, a diversidade de títulos que devem ser exibidos e o limite de ocupação máxima de salas de um mesmo complexo pela mesma obra são estabelecidos anualmente, através de Decreto do Presidente da República. Outros requisitos e condições para o cumprimento e aferição da cota são definidos pela ANCINE, através de edição de Instrução Normativa (IN). A obrigação está prevista no art. 55 da Medida Provisória nº 2.228-1/2001 e atualmente é regulamentada pela IN n° 88/2010.
O que é a Cota de Tela? | ANCINE | Agência Nacional do Cinema | Ministério da Turismo| Governo Federal. Ancine.gov.br. Disponível em: <https://antigo.ancine.gov.br/pt-br/conteudo/o-que-cota-de-tela>. Acesso em: 29 abr. 2022.
[6] BRASIL. Comissão aprova cota permanente para filmes nacionais no cinema - Notícias Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/812862-comissao-aprova-cota-permanente-para-filmes-nacionais-no-cinema >. Acesso em 29 abr. 2022.
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