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NÃO, EXCLUIR PESSOAS LGBTQIA+ DO FUTEBOL NÃO É UMA EXCLUSIVIDADE DA COPA DO CATAR



24 de Novembro de 2022, dezoito horas. A seleção brasileira acaba de ganhar o seu jogo de estreia na Copa do Mundo de 2022. Gritos de alegria, buzinas, cornetas e um sentimento de felicidade no ar. Essa é a graça do clima de Copa. Poucos são os momentos em que nós, brasileiros, nos conectamos em uma energia única, uma sintonia em prol de algo. Afinal, somos o país do futebol. É claro que todos os seus cidadãos devem amar o esporte, certo?

De volta a dezembro de 2010, o Catar, um dos países mais ricos do mundo, ganhou a votação para ser sede da Copa do Mundo de 2022. O país é a primeira nação árabe a sediar o Mundial e desbancou países como Austrália, Japão e Estados Unidos. Embora tenha sido, desde o início, rodeada de polêmicas que envolvem escândalos de compra de votos e corrupção na Fifa[1], a escolha do Catar se mostra, hoje, muito mais problemática do que inicialmente se pensou.


Vimos, em 2014, a bola rolar no Brasil, sendo a segunda vez em décadas que nosso país sediou o evento, ampliando a sensação quase única dos tempos de Copa. Em 2018, foi a vez da Rússia ser a casa do maior campeonato de futebol do mundo. Durante todo esse tempo, pouco se falou sobre o Catar. Ou melhor, pouco se problematizou acerca da escolha do país. Estávamos todos mais ocupados com acompanhar os jogos da vez e, no meio tempo, seguirmos com nossas vidas como normalmente fazemos. Quanto mais nos aproximavamos da Copa de 2022, porém, a atenção geral se voltou para esse pequeno país árabe. Quase que instantaneamente, as diversas problemáticas que rondam a copa desse ano passaram a permear as discussões do grande público. Isto é, as das pessoas leigas que, em geral, preferem acompanhar o futebol de quatro em quatro anos.


Tortura, perseguição, restrições e violencias destinadas à população LGBTQIA+. A lista de problemáticas das quais o país é acusado é extensa. As implementações que o governo absolutista de Tamim bin Hamad bin Khalifa Al Thani faz do código legal islamico são alvo de críticas internacionais. A interpretação do governo catari da Sharia abarca questões políticas sérias, as quais levaram ao medo da população LGBTQIA+ que desejava visitar o país durante o evento[2]. Entretanto, há um fator que pode soar um pouco chocante para a grande massa que acompanha o futebol: excluir pessoas LGBTQIA+ do esporte não é, e nunca foi, uma novidade. Infelizmente, a população queer enfrenta a exclusão no âmbito esportivo há muito tempo, de forma quase institucionalizada.


Penso que essa afirmação pode soar chocante por dois motivos. O primeiro é o fato de que a cultura do futebol é quase que intrínseca à vivência social do ocidente, em especial à masculina. O esporte ocupa o centro da formação social e mesmo pessoal de centenas de milhões de indivíduos ao redor do globo, com o poder de movimentar as massas a torcer e promover o esporte. É quase que inimaginável para uma pessoa heterossexual, em especial um homem, não ter envolvimento com o futebol. Mas, pessoas LGBQTQIA+ muitas vezes desenvolvem aversão pelo esporte por conta, justamente, do espaço hegemônico que o futebol ocupa em uma sociedade patriarcal e heteronormativa, a mesma que as exclui e oprime cotidianamente.


O esporte de menino na infância vira o esporte de macho na vida adulta. Dentro do campo, trejeitos de jogadores logo viram motivo de chacotas por membros de torcidas rivais. Inúmeros são os casos de xingamentos homofóbicos e agressões contra grupos que não se adequam aos padrões heteronormativos impostos pelo esporte. O universo do futebol é, e sempre foi, masculino, heterossexual e, para muita gente, opressor.


O segundo motivo que pode causar choque é o fato de olharmos para o Catar com uma visão ainda influenciada por fatores colonialistas e ocidentalizados, refletidos em toda a construção visual do evento tanto dentro quanto fora do país sede . Países do oriente médio ainda despertam em nós, do outro lado do globo, uma certa estranheza e nos estimulam a formular as teses mais revolucionárias baseadas simplesmente em anos de uma hegemonia cultural eurocêntrica. É absurdamente fácil ignorar todas as problemáticas de gênero, raça e sexualidade existentes em nossa sociedade e passar a apontar estas mesmas problemáticas em uma nação distante, regida por costumes e cultura completamente diferentes dos nossos.


Não, isso não é uma tentativa de amenizar todos os problemas que rondam a sociedade catari. Na verdade, é um alerta para que nós não fiquemos presos em falácias ocidentais de progresso e liberdade enquanto enfrentamos uma onda de violências direcionadas ao mesmo público que tentamos defender contra as problemáticas do Catar. As violações do governo catari não devem ser, em hipótese alguma, motivos para uma generalização de toda uma sociedade e, ainda pior, de toda uma religião. A forma com que o governo autoritário do país aplica as leis não abre margem para implicações islamofóbicas ou xenófobas. Mais do que isso, as ocorrências em nossa própria sociedade mostram que devemos, antes de tudo, voltar nossa atenção para as violações que ocorrem aqui no ocidente e, mais especificamente, em nosso país.


Na verdade, mesmo as manifestações de apoio do ocidente se mostram um tanto vazias, reflexo da omissão frente a esses mesmos problemas aqui. De uma bandeira branca, apenas com os códigos das cores da bandeira do orgulho, lançada pela Pantone, à tentativa de usar uma braçadeira colorida vestida por jogadores que protestam contra a violência da Copa do Catar — enquanto jogam e promovem lucro nessa mesma Copa —, várias foram as formas que pessoas não pertencentes à sigla encontraram de apoiar e demonstrar sua revolta de forma rasa, mais voltada à promoção e ao lucro do que qualquer outra coisa. Enquanto isso, o debate sobre orientação sexual ainda é excluído de currículos escolares nos Estados Unidos[3], o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo[4] e a Europa enfrenta uma crescente perseguição aos LBGTQIA+ em vários de seus territórios.


Tudo isso, claro, não é mais impactante para parte do público do que a proibição da comercialização de cerveja durante o evento esportivo no país árabe. O fenômeno, entretanto, não é surpreendente: ao supostamente vender a copa para o Catar, a Fifa, maior organização internacional do futebol, deixou claro que financiar um esporte tradicionalmente masculino e heteronormativo em um país problemático a fim de lucrar é o seu primeiro objetivo. Se comprometer com as minorias, então, é o seu último.


Fecha esse combo perfeito de celebração ao status quo, acredito eu, a oportunidade de países liberais do ocidente demonstrarem seu pseudo-progressismo enquanto alimentam as narrativas orientalistas contra esses países. Tudo isso, entretanto, se esconde em cerimônias suntuosas, gramados verdes e no maravilhoso clima de copa do mundo que se instala durante os 28 dias em que o evento ocorre. Fica fácil esquecer disso assim.


Aqui, reitero uma coisa: esse texto não é uma acusação ou uma ferramenta de constrangimento para você, fã de futebol e nem para você fanatico por copas do mundo. Ele serve como um meio de reflexão acerca de certas práticas já enraizadas na cultura de uma sociedade primordialmente homofóbica. Torça, grite e comemore. Assista quantos campeonatos for. Não deixe sua paixão pelo esporte morrer. Mas, nesse meio tempo, pense em todos os estigmas que rondam o futebol. Pense em cada xingamento homofobico, em cada violência implícita direcionada aos LGBTQIA+ e em cada repúdio à fuga da heteronormatividade pregada dentro e fora dos estádios, seja aqui ou no Catar. Dessa forma, será mais fácil compreender por que gays, lésbicas, transexuais e várias outras pessoas sob a sigla em geral se afastam do esporte que você tanto ama.


O futebol é, talvez, a maior perpetuação da cultura heteronormativa que temos hoje. Com todas as características tóxicas que essa posição pode trazer, fico feliz em ver que as violações contra LGBTQIA+ causaram mais revolta nesse universo do que eu imaginava. Uma luz no fim do túnel. Talvez o primeiro passo para uma luta efetiva em prol do direito da população queer e de outras minorias. O importante, entretanto, é lembrar que o Catar não é o único país homofobico do mundo e que, infelizmente, a homofobia mundial não vai acabar no dia 18 de dezembro.


Autoria: Arthur Quinello

Revisão: Artur Santilli e Fernanda Abdo

Imagem de capa: Robbie Jay Barratt -Premier League pride/Getty Images


 

Referências/Fontes:


[1] INSIGHT. Exclusive investigation: Qatar’s secret $880m World Cup payments to Fifa. www.thetimes.co.uk, [s.d.].


[2] Associações LGBTQIA+ desaconselham seus torcedores a irem ao Catar. Disponível em: <https://exame.com/mundo/associacoes-lgbtqia-desaconselham-seus-torcedores-a-irem-ao-catar/>. Acesso em: 23 nov. 2022.


[3] JULIÃO, F. Projeto de lei na Flórida conhecido como “Não Diga Gay” gera polêmica; entenda. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/projeto-de-lei-na-florida-conhecido-como-nao-diga-gay-gera-polemica-entenda/>. Acesso em: 25 nov. 2022.


[‌4] Há 13 anos no topo da lista, Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo>.



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