A vacina contra a poliomielite – ou a paralisia infantil, no linguajar do Zé Gotinha – foi desenvolvida na década de 50, depois da "Grande Corrida" global incentivada pela UNICEF, OMS, GAVI Alliance, Rotary International e dos milhões de dólares investidos por governos ao redor do mundo. Em 2020, a pólio foi praticamente erradicada do globo, com apenas dois países que ainda registravam a transmissão da doença. As quatro décadas que antecederam o desenvolvimento da vacina, contudo, foram marcadas por epidemias anuais da doença que se espalharam por regiões urbanas durante o verão, deixando milhares de crianças (e muitos adultos) com algum nível de paralisia para o resto da vida, e levando outras milhares à morte.
É sobre uma dessas epidemias anuais que trata Nêmesis, o último livro do aclamado escritor norte-americano Philip Roth. Falar sobre uma obra que retrata uma epidemia remota em pleno 2021 pode parecer inusitado. Por que revisitar uma tragédia enquanto se está vivendo outra igual, se não pior? Foi a pergunta que me fiz quando comecei a ler a despedida literária de Roth ao longo do mês de maio de 2021, e acabei surpreendida por uma experiência profundamente interessante.
Capa do livro "Nêmesis", de Philip Roth, pela editora Vintage Books.
Nêmesis se passa no verão de 1944 e acompanha a história de Bucky Castor, um jovem professor de educação física encarregado de supervisionar o pátio onde as crianças praticam esportes durante as férias de verão em Newark, Nova Jersey. Apesar de gostar do que faz, Bucky é constantemente assolado pelos sentimentos de culpa e fracasso por não ter sido convocado para a guerra devido à sua miopia. Esses sentimentos se intensificam quando a cidade cai vítima de um surto epidêmico de poliomielite que, em menos de uma semana, causa a morte de dois dos meninos pelos quais estava responsável, além da internação de outros tantos. Conforme piora a situação, a namorada de Bucky o oferece um emprego em uma colônia de férias nas montanhas, para que ele possa sair da cidade durante o pico epidêmico.
Há, obviamente, muitas diferenças entre uma epidemia de pólio em 1944 e uma pandemia global como a da COVID-19. Para começar, ninguém tinha muita certeza de como a doença era transmitida, o que agravou o pânico que tomara conta da vizinhança de Bucky após a notificação dos primeiros casos. Ninguém sabe se o melhor é deixar as crianças em casa ou ao ar livre, se devem ser impedidas de praticar esportes ou se as atividades físicas atuam na prevenção da pólio. Por outro lado, os efeitos violentos da paralisia e a letalidade, que recaem principalmente sobre os jovens, impedem o tipo de atitude negacionista com a qual boa parte da população reagiu à COVID nos primeiros meses da pandemia em 2020. As famílias que podem, fogem com suas crianças para a praia ou para o campo, como o próprio Bucky é eventualmente encorajado a fazer, enquanto que, os que não têm essa opção, trancam seus filhos em casa, na tentativa de protegê-los de algo que não se sabe bem como combater. Rapidamente, algumas zonas de Newark são colocadas sob quarentena, e todas as noites o rádio faz um "boletim da poliomielite", relatando o número de casos, os novos óbitos e as áreas nas quais o nível de transmissão é elevado.
Assim, apesar das diferenças, a obra de Roth é aflitiva justamente pela familiaridade. As tensões sociais que surgem juntamente com o medo da doença são conhecidas. Nas palavras do escritor Luiz Maurício Azevedo, "a ameaça da pólio – ou da COVID-19 – não é somente biológica, mas cultural. É um atentado à identidade humana, à narrativa dentro da qual decidimos instalar nossa vida. As doenças ordinárias nos dizem que somos mortais, mas as pandemias nos dizem que somos mortais como o Outro".
Com isso, retomo a minha pergunta original. Por que seria relevante – ou de bom tom – falar sobre as dores de uma epidemia no meio de outra? Além dos clichês já tão conhecidos como "a história se repete" ou "podemos aprender com o passado", sinto que há uma força enorme em compreender que a humanidade já passou por algumas coisas, reagiu a elas, e se reconstruiu razoavelmente bem. Cicatrizes e tudo.
Em uma cena do livro, logo após o falecimento de um dos meninos, Bucky se vê encarregado de tranquilizar duas dúzias de garotos apavorados, temendo a paralisia e a morte que haviam chegado para seus colegas. Muitos deles foram aos funerais dos amigos e sabem sobre o futuro reservado às crianças que contraem a pólio. Poucos dias depois, o professor chega à colônia de férias, onde as crianças protegidas da pólio são alegres, vigorosas e livres de qualquer medo da morte. O contraste entre essas e aquelas que ficaram na cidade leva o protagonista a uma nova crise de consciência e, membro de uma forte comunidade judaica, transforma sua raiva – pelas crianças perdidas e pelo pânico que as consumiu tão jovens – em um inédito questionamento a Deus:
"Impressionante como as vidas podiam tomar rumos tão diferentes e como cada um de nós era impotente diante da força dos acontecimentos. Mas onde entrava Deus nessa história toda? Por que Ele colocava determinada pessoa na Europa ocupada pelos nazistas com um rifle na mão e outra no refeitório [de uma colônia de férias] em frente a um prato de macarrão com queijo? Por que punha uma criança de Weequahic na Newark infestada de pólio durante o verão e outra no esplêndido santuário de Poconos?"
As crianças de Roth me lembram, em alguma medida, as crianças pequenas que estão sendo socializadas em meio à COVID. Crianças temerosas ao toque de estranhos, conscientes do uso de máscaras, praticantes instintivos do distanciamento social e que fazem uso do álcool em gel como se fosse uma segunda natureza. Quando as encontro na rua, me pergunto quais as marcas que tanto tempo de medo e cuidado, em uma idade tão jovem, deixará no futuro. Nesse ponto, Nêmesis me trouxe alguma tranquilidade. As crianças que foram protegidas pelos pais e que passavam verões amedrontadas pela ameaça da pólio são nossos avós. São a prova viva de que, depois das vacinas, e com o tempo, as cicatrizes deixadas pela doença no imaginário coletivo se esvaem, e sessenta anos no futuro, nossos netos crescerão sem a menor consciência do que foi ter medo da COVID. A sensação de ler um retrato passado do momento vivido agora é estranhamente esperançosa: se há de fato algo cíclico na forma como a história se constrói, é possível ver o final da pandemia e a possibilidade de um retorno à normalidade.
Outras lições trazidas pelo livro são mais amargas. Afinal, o sentimento de indignação de Bucky – um misto de culpa e impotência – que se reverte no questionamento quanto ao papel de Deus nessa tragédia, vem de um lugar de privilégio: o privilégio dos que têm a possibilidade de estarem razoavelmente em segurança durante os momentos de crise. Os que podem se guardar em casa em momentos de risco enquanto, por nenhuma razão além da roleta russa da vida (e, no nosso caso, da incompetência do Governo Federal), outros tantos são expostos diariamente ao risco da morte. E não apenas ao risco de morte, mas a todos os outros impactos da pandemia que reverberam de maneiras distintas por conta das desigualdades econômica e racial que dividem o país.
Segundo dados liberados pela CNN em maio deste ano, 19 milhões de brasileiros passaram fome em 2020. Já um estudo realizado pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirmou no ano passado que pretos e pardos sem escolaridade tiveram um índice de 80,35% de taxas de morte devido ao coronavírus, contra 19,65% dos brancos com nível superior. O fenômeno não é novo e nem exclusivamente brasileiro, ainda que a postura negacionista do Governo desde o começo da pandemia tenha certamente sido um fator agravante.
Em conclusão, sinto que revisitar a epidemia de 1944 foi como confrontar um espelho distorcido do presente, com resultados dúbios. Se por um lado é possível ver o reflexo das injustiças mais gritantes que aparecem em momentos de doença, também é possível antever a possibilidade de recuperação. A certeza de que as coisas passam, e é possível reconstruir um senso de normalidade quando tiverem terminado.
Para citar a historiadora Lilia Schwarcz, "acho que a história não se repete, mas certamente dá uma lição".
Revisão: Glendha Visani
Imagem de capa: Reprodução Abertura
Autora: Luiza Castelo
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