NA CONTRAMÃO DO SONHO AMERICANO
- Larissa Maria
- 23 de jun.
- 6 min de leitura

É 2025. Da janela, seja a do quarto ou a virtual, observa-se um cenário político mundial imprevisível e permeado por contradições. É curioso que, no século em que mais se discute a importância da efetividade da justiça e dos Direitos Humanos, a dignidade de milhares de pessoas seja continuamente desrespeitada e questionada com a audiência de outras milhares. A questão dos imigrantes sem documentação nos Estados Unidos tem sido pauta de discussão ao redor do mundo devido às políticas que o governo Trump tem colocado em prática, com medidas radicais e inflexíveis em relação a essa população.
Nos Estados Unidos, são considerados imigrantes ilegais aqueles que permanecem no país sem documentação prévia permitindo a estadia ou que permaneceram após o vencimento do visto de permanência. Nesse sentido, o número estimado de imigrantes sem documentação, segundo organizações especializadas em imigração, ultrapassa 13 milhões de pessoas[1].
As pessoas representadas por esse número, constantemente alvos de um discurso discriminatório defendido pelo presidente e pelos grupos de extrema-direita que o apoiam, têm um perfil específico: dos países de origem com maior número de imigrantes sem documentos que residem nos EUA, o México lidera a lista, seguido de outros países do sul global como a Guatemala, Haiti, El Salvador, Honduras, Venezuela e Brasil. Dos pedidos de asilo realizados por estrangeiros, dois em cada três vieram de populações de origem latino-americana, sendo que o restante tem origem em países da África, Ásia e Europa[2]. São populações diversas, com diferentes bagagens culturais e motivos políticos e socioeconômicos que as levaram a recorrer ao deslocamento quase forçado para o alcance de melhores condições de vida.
O discurso propagado pelas autoridades americanas estigmatiza a população imigrante sem documentação, descrevendo-a como uma fonte de “envenenamento do sangue americano” — palavras do próprio presidente, que constantemente associa essas pessoas ao crime e à perturbação da ordem e da democracia. Contrariamente, dados do Departamento de Segurança Nacional mostram que essa população representa parcela considerável da força de trabalho norte-americana, contribuindo significativamente para a sua economia. Esses trabalhadores, que em sua maioria residem no país há mais de 12 anos e construíram suas famílias, trabalho e planejamento de vida no território, estão distribuídos entre os setores de agricultura, indústria alimentícia, construção civil, fábricas, serviços e transporte[3].
O governo Trump, apesar da aparente preocupação em manter a hegemonia norte-americana em relação ao restante do mundo – a manutenção do chamado “sonho americano” –, parece ignorar a relevância política e econômica desse grupo e, sobretudo, negar a humanidade e dignidade dele. Durante a campanha presidencial, entre as propostas realizadas, Donald Trump afirmou que uma vez eleito realizaria “a maior operação de deportação da história dos Estados Unidos”[4]. O objetivo, segundo o governo, seria combater a suposta criminalidade trazida pelos imigrantes associados a organizações criminosas, com a meta inicial de deportar um milhão de pessoas.
Essa meta, dentro de uma narrativa que coloca os imigrantes como inimigos objetivos e causadores do mal que impede o progresso de toda uma nação, parece um discurso promissor e que atrai parte considerável das massas. Mas isso não é uma novidade na história ocidental. Coincidentemente, a criação de um bode expiatório cujo expurgo salvaria a civilização de todos os males foi crucial para a instauração de regimes totalitários, que se utilizam de pós-verdades e convincentes propagandas que consideram o ataque a esse inimigo nada além de autodefesa[5].
Após a posse presidencial, esses ataques deixaram de figurar apenas no discurso e se materializaram em práticas institucionais: no dia 30 de maio desse ano, a Suprema Corte dos Estados Unidos autorizou o governo Trump a revogar o status de 532 mil imigrantes de Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela, que contavam com uma permissão de permanecer temporariamente no país por motivos humanitários[6]. Cresceu, também, o número de detenções realizadas pelo Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE)[7]. Como se não bastasse, foi tirado do ar o aplicativo CBP One, que viabilizava a realização de pedidos de asilo no país por parte de imigrantes sem documentos. Para arrematar a lista (que não termina aqui) de medidas restritivas tomadas contra essa população, endureceu-se o controle sobre áreas de fronteira, impedindo a travessia e obrigando os imigrantes a ficarem à própria sorte, sem saídas viáveis ou seguras para fugirem de condições sub-humanas de sobrevivência em seus países.
As medidas afetaram milhares de pessoas na fila para tentar conseguir a sua documentação, que acabaram ficando sem respostas. Sem a possibilidade de entrar no país, permaneceu desamparado um grupo composto por mulheres chefes de família com seus filhos menores de idade, homens, mulheres grávidas, idosos, jovens e pessoas com deficiência[8].
O processo de imigração é, na maioria dos casos, permeado por dificuldades enfrentadas por essas populações, que já lidam com desafios em seus países de origem, como a violência e a extrema pobreza. Para além dos problemas em sua terra natal, essas pessoas enfrentam os inúmeros perigos e incertezas provenientes da tentativa de buscar em outro país alguma estabilidade. O processo quase nunca é simples ou fácil.
Em muitos casos, na ausência de recursos financeiros, elas arriscam as próprias vidas em trajetos tortuosos e degradantes, como ocorre no trajeto realizado por meio do estreito de Darién, região de floresta densa entre a Colômbia e o Panamá. O trajeto é classificado por quem já passou por ele como a selva mais perigosa da América Latina, uma das rotas mais mortais de imigração para os Estados Unidos, a Trilha do Inferno. Mesmo assim, com a esperança de uma vida melhor, milhares de famílias sem qualquer preparo ou proteção adequada passaram pela rota do Darién – que, em 2023, foi atravessado por cerca de 500 mil pessoas –, sujeitas a perigos como as condições extremas de umidade, temperatura e vida selvagem, além dos perigos relacionados à atividade humana, como sequestros, roubos e violência física e/ou sexual[9].
A tortura de atravessar uma floresta úmida e excruciante com quase doze mil quilômetros de extensão com crianças, animais de estimação, mulheres grávidas e idosos revela a urgência de deixar o próprio território de nascimento para construir uma vida melhor longe dali, ainda que isso signifique correr risco de vida e ter de se submeter a situações humilhantes. Ainda que signifique viver longe da própria cultura, da própria família, das próprias raízes. Mesmo assim, o caminho tortuoso do Darién, que representa apenas uma parte do caminho, sucedida por outra longa jornada de migração em direção à América do Norte, foi uma alternativa para fugir de situações de pobreza e miséria.
No entanto, em 2025, devido às medidas tomadas pelo governo de Donald Trump e à pressão por maior controle migratório de países latino-americanos, a rota migratória do estreito de Darién foi esvaziada[10]. As políticas restritivas contra imigrantes desencadearam um fluxo reverso de imigrantes que, sem outras opções, acabaram por serem obrigados a voltar ao local de origem, enfrentando obstáculos igualmente perigosos no retorno ou mesmo buscando rotas alternativas por meio do mar, sem quaisquer garantias de segurança[11]. No Brasil, histórias de imigrantes sem documentos que foram deportados também ficaram conhecidas, principalmente devido a atitudes repressivas de agentes de imigração dos Estados Unidos.
O olhar do mundo para os imigrantes no momento atual é urgente, principalmente para que se questione as atuais medidas tomadas em relação a esse grupo em um dos países com maior potencial econômico e bélico do mundo. É crucial que se enxergue o impacto disso na vida de milhares de famílias que, tendo sofrido com a marginalização histórica e o abandono estatal, buscam trilhar novas jornadas, guiadas por sonhos que, no momento atual, são continuamente atacados e criminalizados, ainda que a sua força de trabalho componha um dos pilares que mantém esse potencial de pé. A democracia deve existir para além de um discurso falacioso, e é dever de quem a defende lutar para que ela seja plena.
Se o Estado de Direito serve apenas para proteger alguns, ele deixou de existir para muitos. Seguiremos chamando isso de liberdade?
Autoria: Larissa Maria
Revisão: Pedro Anelli
Imagem de capa: Reprodução | Charly Triballeau
Referências
[1]OROPEZA, Valentina. 7 gráficos que mostram quais imigrantes Trump quer deportar dos EUA. BBC News Brasil, 30 mar. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1d4v543yy3o. Acesso em: 16 jun. 2025.
[2] Ibidem.
[3]KERWIN, Donald; NICHOLSON, Mike; ALULEMA, Daniela; WARREN, Robert. US Foreign‑Born Essential Workers by Status and State, and the Global Pandemic. Center for Migration Studies, maio 2020. Disponível em: https://cmsny.org/publications/us-essential-workers/ acesso em: 19 jun. 2025).
[4]BERMÚDEZ, Ángel. A história por trás da 'maior deportação em massa de migrantes na história dos EUA' há 70 anos. BBC News Brasil, 01 jun. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2x07g432npo. Acesso em: 16 jun. 2025.
[5]ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 361 p.
[6]Brasil de Fato. Trump pode revogar proteção legal de mais de milhão de imigrantes nos EUA após decisão judicial. Brasil de Fato, 30 maio 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/05/30/trump-pode-revogar-protecao-legal-de-mais-de-milhao-de-imigrantes-nos-eua-apos-decisao-judicial/. Acesso em: 16 jun. 2025.
[7]BARNABÉ, Gabriel. Trump intensifica ações longe da fronteira e aumenta pressão contra imigrantes nos EUA; veja vídeo. Folha de S. Paulo, 25 maio 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/05/governo-trump-intensifica-acoes-longe-da-fronteira-e-aumenta-pressao-contra-imigrantes-nos-eua.shtml. Acesso em: 16 jun. 2025.
[8]BLUMER, Duda. Quem são os imigrantes “ilegais” alvo da deportação em massa de Trump nos EUA?. Brasil de Fato, 02 fev. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/02/02/quem-sao-os-imigrantes-ilegais-alvo-da-deportacao-em-massa-de-trump-nos-eua/. Acesso em: 17 jun. 2025.
[9]O GLOBO. Cobras, escorpiões e traficantes: veja os 10 maiores perigos do Darién, rota migratória que bate recordes. O Globo, 01 ago. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/08/01/cobras-escorpioes-e-traficantes-veja-os-10-maiores-perigos-do-darien-rota-migratoria-que-bate-recordes.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2025.
[10]Folha de S. Paulo. Passagem de Darién esvazia-se após repressão de Trump. Folha de S.Paulo, 10 abr. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/04/passagem-de-darien-que-ja-foi-rota-migratoria-esvazia-se-apos-repressao-de-trump.shtml. Acesso em: 19 jun. 2025.
[11]CORREAL, Annie. Imigrantes venezuelanos arriscam a vida em autodeportação dos EUA; veja vídeo. Folha de S.Paulo, 2 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/06/imigrantes-venezuelanos-arriscam-a-vida-em-autodeportacao-dos-eua-veja-video.shtml. Acesso em: 19 jun. 2025.
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