NOITE ESTRELADA
- Vicky Auricchio Saes
- 28 de mai.
- 6 min de leitura
Oliver sentiu um leve incômodo ao acariciar as folhas daquele estranho ser esverdeado. Ele devia estar longe da cidade para conseguir ver um desses – ainda mais tão de perto e em tão bom estado. Não fazia ideia do nome, afinal, só havia visto um desses na visita ao Museu da Vida, muitos anos antes. Ele deu alguns passos para trás, tomando espaço para visualizar melhor. Não que a figura fosse assim tão digna de ser admirada, nada que ele já não tivesse visto de um jeito ilustrado e fictício. Foi saindo desse mesmo devaneio que levantou angularmente o queixo, pousando agora o olhar não nas folhas que se agarravam ao caule escuro e áspero, mas no que jazia acima delas. Isso, sim, era digno de sua admiração.
O usual céu cinza-escuro agora exibia um azul forte, quase rebelde, ainda escurecido, mas muito mais reconfortante que o clássico acinzentado chato. Entretanto, não era esse o detalhe que mais o abismava: eram os pequenos pontos iluminados que salpicavam a imensidão, como as sardas salpicavam seu rosto. Ele olhou para o céu como quem olha para um espelho, comparando sua cor ao universo e seus detalhes à luz. Estendeu a mão em chamado, porém sabia que era uma súplica, e notou seus pezinhos se descolarem do chão batido e suas mãos se aproximarem deste tão belo quadro, fazendo com que Oliver se sentisse menos como menino e mais como arte.
E então caiu. Com um suspiro e um grito, se viu de volta à casa, às cobertas, à estranha morbidez colorida de um quarto de criança. Pensara diversas vezes em redecorar o local, mas ainda tinha certo apego. No final, o que o incomodava mesmo era parecer infantil, não ser criança. Antes de levantar por completo, xingou baixinho com o único palavrão que sabia e calçou os chinelos surrados. Na sala, a TV noticiava as novas empresas da cidade, mas ninguém estava lá para assistir. A mãe devia ter saído pouco antes, apressada, esquecendo-se de desligar tanto a TV quanto a água no fogo, além do próprio cartão pessoal. Típico. Ela andava cada vez mais atrapalhada desde que fora contratada no novo emprego, como atendente no Banco de Dados Central. Ela passava tanto tempo longe que Oliver se colocava na posição de responsável, e, mesmo não sendo tão crescido, acreditava que, se podia cuidar de si mesmo, podia ao menos tentar cuidar dela.
Passou o café e se dirigiu à notícia, não para ouvi-la, mas para encerrá-la. Já não aguentava mais ouvir as mesmas coisas serem anunciadas com o mesmo tom inovador e propagandista. Oliver se sentia contraditório. Mas também sentia que o resto do mundo era assim. Deu de ombros e foi se aprontar para sair.
Já apropriadamente vestido, Oliver parou perto da porta de entrada, onde um espelho mal fixado balançava de um lado para outro, enquanto ele tentava ajeitar os cachos azulados que caiam rebeldemente sob seu rosto. Azuis... não fazia muito desde que havia tingido os cabelos pretos dessa cor. Acreditava que eles o tornariam menos... uniforme. Posicionou a mão na maçaneta, mas por algum motivo permaneceu ali, parado. Alguma coisa no seu próprio olhar o prendeu, e decidiu analisar os contrastes. Passou os dedos nas pontas das mechas, analisando como contrastavam sob a pele escura e como suas sardas conseguiam não perder o próprio contraste. Acariciou o reflexo e fechou os olhos com força, recebendo, de um modo quase epifânico, as memórias da noite anterior.
Não sabia se era real, um sonho ou um delírio por culpa da cafeína. Não sabia nem se cafeína causava delírio, mas isso pouco importava agora. Tudo que Oliver precisava saber era o que eram aqueles malditos pontos brilhantes no céu. Rasgou seus planos de visitar a mãe no trabalho antes de ir à escola, como geralmente fazia quando ela esquecia algo, ou mesmo quando queria apenas vê-la, pois agora deveria tentar evitá-la. Agora, precisava ir ao melhor lugar que conhecia para buscar informações: o Banco Central da cidade. Todos os livros, coisas antigas e matérias uma vez escritas estavam lá, digitadas e transformadas em hologramas de fácil acesso. Andou sob o asfalto com pressa, enganchando a máscara atrás das orelhas sem diminuir o passo, e, em poucos minutos, já havia chegado. Listou o nome na entrada, tomando cuidado para não ser visto, e foi uma das vastas salas para começar a pesquisa.
Ele tentou. Realmente tentou. Mas nada se falava sobre as luzes na noite escura. O máximo que Oliver encontrou foi um artigo sobre os grandes postes iluminadores, tão naturais quanto a fumaça, que rodeavam toda cidade, trazendo luz das seis às seis. Vindos de uma época em que tudo era tão escuro e espesso que os pobres cidadãos mal podiam deixar suas casas, temendo a escuridão e o respirar. Ao menos era isso que o artigo dizia.
Suspirou derrotado vendo a hora passar. Tudo bem. Sua mãe provavelmente receberia a advertência por ter faltado à aula e mal a leria antes de assinar. Não que fosse descaso dela, não. Ela só é... ocupada, alguém tinha que tomar conta deles, afinal. Afastou os pensamentos enquanto enrolava um cachinho nos dedos, focando única e exclusivamente no seu próximo passo. Não é do tipo que desiste, muito menos do tipo que só aceita. Sentiu-se desafiado pelo vazio, e, em um ímpeto mal pensado, passou o cartão da mãe na máquina, mantendo os olhinhos esperançosos e determinados enquanto esperava por aquilo que lhe era proibido. A omissão das informações subsequentes dizia muito mais do que elas mesmas. Passava os olhos com agilidade, rodeado por imagens, textos, notícias, informações incríveis que jamais vira na TV ou na escola, ou mesmo em uma conversa. Ninguém, absolutamente ninguém parava para conversar sobre isso. Todo mundo é tão ocupado! E Oliver não se sente no direito de culpar, apenas no de questionar.
Até que de súbito seus olhos pararam em uma imagem. Era uma pintura muito antiga, que ele nunca havia visto. Teria se lembrado de tamanha beleza em explosão de cores, mescladas, sortidas, harmonizadas. Pinceladas aleatoriamente precisas, quase confusas, e ainda assim tão magníficas, uma linha tênue entre o sonho e o abstrato. Isso, sonho... era isso que faltava! Eram os pontos incandescentes que se dispunham, audaciosos, sob os azuis sobrepostos. Tão arte quanto se sentia. Ao canto, uma legenda falha dizia: “Van Gogh, Noite Estrelada”. Sentiu aquele arrepio estranho de quando uma ideia se instaura. Olhou para a montanha pintada e novamente para o céu. Sabia exatamente o que devia fazer.
Fechou a pesquisa e retirou o cartão, tomando o cuidado de não danificá-lo. Não queria que sua mãe recebesse uma advertência por isso também. Enquanto andava, olhou ao redor. Não era algo que costumava fazer, e, pelo visto, as outras pessoas também não. Viu cabeças baixas e propagandas altas, rostos cobertos, assim como o seu próprio, e olhares vazios já acostumados às luzes incandescentes e artificiais que os cercavam. Com o entardecer, os grandes postes iluminadores já se prontificavam, tão altos que prédio algum se punha acima deles. Oliver parou um instante, o que também não era de fazer, e tentou olhar para cima. Mas não conseguia. Forçava os olhos na luz e ela os forçava de volta. Uma cor tão imperativa que gritava ao mundo, clareada como a manhã, que a vida é embaixo. Avistou o monte que procurava e pôs-se a correr.
A noite começou a cair quando Oliver se viu ao pé do monte, nos limites da cidade. Não sentia fome, mas corria como quem tem sede, buscando ao mesmo tempo fugir e alcançar a tão almejada luz. No meio do caminho, o asfalto já se acabava, assim como o próprio sol à sua frente. Forçou o pensamento, se lembrando da pintura e questionando o estrelado no céu, ao imaginar como seria o sol naquele mundo embaralhado, e que cores além de um amarelo acinzentado o autor usaria. Subia com voracidade, batendo muitas vezes as mãos mal acostumadas no chão de terra batida, mas seguia com tanta determinação que logo já estava no topo.
Ainda ofegante, Oliver olhou ao redor e se aproximou da estranha estrutura esverdeada à sua frente. Passou os dedos no tronco áspero e em seguida acariciou as folhas. Olhou para ela como uma velha amiga, direcionando-lhe até um breve cumprimento. Em seguida, se virou para a cidade, soberbo por vê-la de cima. Parecia de brinquedo. Tomou um passo à frente, e, tendo certeza que estava muito além do domínio artificial, olhou para cima.
Mas o espesso céu acinzentado ainda estava lá. Algo estava errado. Algo tinha que estar errado. Apenas desta vez, Oliver resistiu à vontade de se fazer forte e desabou, chorando como o menino que era. Mas então, escutou uma sirene, alta e ameaçadora. Direcionou o olhar a cidade e viu luzes vermelhas e vozes gritando. “As fábricas pararam”, berrou um alto-falante, antes de ser silenciado pelo escuro. Escuro esse que se propagava ala por ala da cidade, consumindo as luzes uma de cada vez, até que mal se podia diferenciar o lugar da imensidão acima. Oliver parou, talvez mais calmo do que devia, e se permitiu um último olhar ao espaço. Foi então que sentiu o cinza começar a se dissipar. Nenhuma chaminé se manifestou. O único som vinha do desespero popular. E a luz… a luz, aos poucos, tímida e fraca, procurava lugar entre a fumaça que se agarrava fortemente a sua posição impositiva. Oliver se levantou, esticou os braços e, em um ato puramente esperançoso, acreditou que o brilho seguraria sua mão, e ele o ajudaria a reivindicar seu lugar no mundo.
Autoria: Vicky Auricchio Saes
Revisão: Giovana Rodrigues, Isabelle Moreira e André Rhinow
Imagem de Capa: Pinterest, desenho digital
Comments