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O CAMINHO ATÉ A GV



Acordo ao lado de Lorena todos os dias. Ela deixa o nosso quarto às seis e meia e eu fico até às sete na cama. Levanto capenga para trocar de roupa. Vou ao banheiro para lavar o rosto e arrumar a franja. Só saio de lá depois de ter recolhido todos os fios de cabelo que pairam sobre o azulejo branco. Ando até a cozinha para fazer café. Preto e adoçado. E volto ao quarto para passar perfume. Às sete e quarenta e cinco, deixo o apartamento da minha tia para pegar o Sacomã das oito horas e quatro minutos.


Caso o homem careca esteja na portaria, dou bom dia e ele me responde com um aceno simpático. Caso a mulher loira esteja no lugar dele, dou bom dia e ela finge que não ouviu. Saio do prédio e vivo Perdizes. Subindo ladeira. Passo pela rua Diana e sorrio. É muito difícil não lembrar da princesa. Caminho até o ponto de ônibus e me sento no amurado da sorveteria ao lado. Aparecem a moça do rabo de cavalo preto e a senhorinha que veste roupas de esportista. Com sorte, o ônibus chegará em 10 minutos. Ele nunca chega em 10 minutos.


Gosto da mulher do rabo de cavalo preto. Nos dias em que ela não vem, o Sacomã atrasa mais do que o normal. Nos dias em que vem, é ela quem faz sinal ao ônibus quando ele cruza o semáforo da rua de baixo. Às vezes, aparece um menino de mochila que fica muito nervoso quando passam das oito horas e quatro minutos. Ele sempre me deixa entrar na frente dele no ônibus. Tem um senhor engraçado que gosta de reclamar da pontualidade do transporte público paulistano. Um dia, ele deu “boa tarde” ao motorista em vez de “bom dia” para expressar sua irritação com o atraso da vez. Conheço o destino da maioria dessas pessoas. Almas estranhas cujos corpos encontram o meu às oito da matina nos dias de semana.


Se o ônibus chega em um horário razoável, sempre há assentos livres. Gosto de sentar do lado da janela e de ouvir música enquanto observo a cidade. Nunca leio. Queria ler Um Quarto Todo Seu, de Virginia Woolf. Emprestado a mim por uma amiga querida. Isso me faria muito mais interessante e misteriosa. Mas cedo facilmente à tentação do meu fone de ouvido branco com fio. Escuto Lana. “Will you still love me when I’m no longer young and beautiful?”. Ou Amy. “You don’t like ballers/They don't do nothing for ya/But you’d love a rich man, six-foot-two or taller”. Aproveito a obrigatoriedade do uso da máscara dentro do transporte público para mexer os lábios conforme a letra das músicas. Sem que ninguém perceba.


Quando não sei o que fazer com as mãos, mexo na bolsinha preta com corações dourados que ganhei de natal de uma tia minha. Outra que não a do apartamento. Toda a minha vida está naquele acessório de couro. Meu RG. Meu bilhete único. Minha carteirinha da GV. E minha carteira falsificada da Dior, em que guardo meu cartão de crédito e meus comprovantes de vacina. Depois de uma fuçada por essas preciosidades, passo o olho pelas minhas unhas. Quase sempre nudes ou rosa bebê. Se olho de relance para alguma superfície espelhada e vejo que estou descabelada, penteio os cabelos com uma escova que guardo na bolsa da faculdade. Não acho que isso seja muito higiênico.


Passo a maior parte do caminho olhando pela janela. Gosto da maneira como o ônibus fica quase na vertical ao sair de Perdizes por causa da inclinação das ruas. Me pergunto se um dia me cansarei de percorrer o mesmo trajeto todos os dias. Por ora, a resposta é não. Desde que Lorena me disse que gostava de passar pela Doutor Arnaldo, lembro-me dela quando passo por lá. Acho bonita a vista da rua para o Cemitério do Araçá e adoro olhar as bancas de flores que contornam a sua amurada. Quando chego à Paulista, me sinto em uma cidade à parte de São Paulo. Muito mais inquieta e superpovoada. O ônibus passa pelo MASP e pela Gazeta do Povo. Eu desço no próximo ponto.


Salto do ônibus depois de apertar o botão de parada. Atravesso a rua e caminho até o prédio de número 548 pressionando minha bolsinha preta de corações dourados junto ao corpo, como se minha vida dependesse disso. Uma amiga que se preocupa muito com assaltos me ensinou a fazer assim. Dou bom dia aos porteiros da Escola de Relações Internacionais e uso a minha carteirinha para passar pelas catracas. Me resta apertar o botão do elevador e torcer para que suas portas desreguladas não se fechem em mim. O caminho até a GV acaba aqui (hoje).


Autoria: Beatriz Nassar

Revisão: Bruna Ballestero e Guilherme Caruso

Arte: Girl Texting at Roberto Clemente Bus Stop por Cathy Enthof


1 comentário

1 Comment


emarinhogerhardt
emarinhogerhardt
May 16, 2022

Interessante como a autora descreve situações cotidianas de uma forma tão delicada, que elas se tornam especiais. Costumamos não dar atenção à complexidade da nossa rotina, pois tudo se torna um hábito. Consequentemente, esse hábito se torna tão comum que não damos mais o mesmo valor que dávamos antes de se acostumar com o mesmo. Sentimos falta desse hábito somente quando deixamos de vivenciá-lo. O poder desse texto se revela por meio da transformação de uma vida mundana em arte.

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